Prefácio



Este livro foi escrito
em um período aproximado de seis meses,
sempre à noite,
após o telejornal noturno,
antes do programa do Jô Soares,
ou nos fins de semana,
quando vinham idéias e quando o tempo sobrava.

Às vezes,
a produção era intensa
e rendia várias páginas;
às vezes,
o escrito num dia
era apagado no outro,
voltando ao ponto de parada.
São crônicas despretensiosas,
relatando situações comuns do dia a dia,
com doses variadas
de comicidade e tragédia,
convivendo lado a lado no texto,
assim como na vida.

Alguns textos fazem parte de uma série:

- “Namoro” é uma série de crônicas
que discutem situações do convívio íntimo
entre namorados;

- “A essência do pensamento...” apresenta
a vida e a obra de grandes pensadores
segundo uma visão menos rigorosa
que a dos estudiosos e dos historiadores;

- “Tributo ao Millor fabuloso” é uma homenagem
ao Millor Fernandes,
no formato de suas conhecidas
“Fábulas Fabulosas”,
de um livro antigo do autor.

Além deste comediante,
outros grandes cronistas
— como Luís Fernando Veríssimo e Inácio de Loyola Brandão—
são citados,
direta ou indiretamente,
devido à influência que exerceram
na minha vida
e na vontade que manifestei
de escrever este
primeiro
e não único
livro.

Espero que a inexperiência
e a ousadia consciente
deste autor estreante
pesem em seu favor
e induzam uma leitura agradável
através das páginas deste volume.

São Paulo, 1995.

O nascimento da vida



A primeira grande provação a que se submete o candidato à vida é a ejaculação. Você, que ainda não é você, não tem sequer a certeza de estar sendo lançado no caminho certo. Não sabe se vai parar numa parede de borracha, num pedaço de papel higiênico ou se vai — seguindo os desígnios da natureza — penetrar uma vagina colo uterino adentro e encontrar sua cara-metade, o óvulo. A vida é incerta mesmo antes de ser vida.

Mesmo supondo a melhor hipótese — a da cópula reprodutória — você, que ainda não é você, não se pode declarar um vencedor, isto é, um ser vivo. Vai ter de nadar feito um gameta louco, um espermatozóide desesperado, para vencer nada mais, nada menos que 300 milhões de concorrentes. Vai ter de rezar para haver óvulo no fim do túnel, para que as taxas de progesterona e estrógeno estejam favoráveis, para que o endométrio esteja firme sobre a parede interna da vagina receptora e para que a dona dessa vagina não esteja bêbada, vestida de cigana numa festa à fantasia, praticando sexo inseguro durante o período fértil (o que aumentaria a possibilidade de você ser abortado)... Não adianta. A única certeza que você, que ainda não é você, tem é que o seu dono não era estéril, nem vasectomizado.

Terminada com êxito a angustiante maratona da natação espermática — da qual só sai um vencedor, sem possibilidades de prata ou bronze — você, que, embora ainda não seja você, está no caminho certo, deve ter conseguido penetrar no óvulo à força bruta, está morrendo de dor de cabeça e perdeu o rabo. E olha que você foi o vencedor da corrida. Imagine os perdedores...

No interior do óvulo, meu amigo, é outro papo. Se você, que ainda não é, fosse um ser vivo poderia até dizer: “isso sim é que é vida!”. Não é vida ainda, mas a fecundação foi um sucesso e o óvulo fecundado deve estar se encaminhando vagarosamente para o útero da receptora que, se tudo der certo, será mamãe. A sua mamãe.

Beleza! Tudo deu certo. Alguns dias se passaram e lá está você, ou aquilo que será você, grudado no endométrio que, graças a um tal de hormônio luteinizante, ficará firme até o fim, ou melhor dizendo, até o começo da sua vida. Ali, você permanecerá por longos noves meses, sofrendo transformações diárias e divisões celulares. Uma tal de mitose será tudo o que você fará enquanto não terminar de crescer e virar gente pequena.

É uma rotina desgastante: multiplicação de células, desenvolvimento de órgãos e tecidos, decidir o sexo na mais tenra idade. Como saber o que será melhor: ser homem ou ser mulher? Você ainda nem conhece o seu pai para ter uma referência masculina! Ser homo ou heterossexual? Acaba resolvendo o problema escolhendo apenas o sexo, deixando a preferência sexual para depois. E continua crescendo.

Chega uma hora em que você, que finalmente já é você, virou um bebê de verdade e se acostumou a receber alimento e oxigênio pelo umbigo. Nesse momento, a natureza resolve polemizar de novo, forçando sua mãe a te botar para fora. Antes, tinha alimento, calor, conforto e segurança. Lá fora, longe das entranhas maternas e da submersão amniótica, sabe lá o que lhe aguarda. Mas não tem jeito: os homens de branco dizem que se você não sair pela mesma porta por onde entrou, eles serão obrigados a cortar a barriga de sua mãe para tirá-lo de lá! Que sacanagem!

Você, mais você do que nunca, resolve sair por bem. E sua mãe, que já teve outros filhos, põe você para fora tão rápido que se o médico não fosse goleiro do time do PS, e dos bons, você teria ido parar num canto da sala.

“Pois bem, já saí. E agora, cadê o ar? Que palhaçada é essa? Vocês me tiraram do bem-bom, do quentinho, do escurinho, pra me jogar num mundo frio, cheio de luz, sem ar e, o pior de tudo, de ponta-cabeça! Eu quero respirar... Moço de branco, larga minha perna e me dá ar! Não. Não bate em mim, moço. Não! Buaaaaahhhh... Ufa! Até que enfim eu consigo respirar. Eu quero a minha mãe!”.

Pronto. O pior já passou. Você já respira e está no colo quente e acolhedor de sua mãe. Já abre os olhos e vê pessoas muito maiores e mais bobas que você. Um homem de bigode beija sua mãe, depois você, depois faz caretas e fala como um retardado.

“Meu Deus, será que esse idiota é o meu pai! Como é que minha mãe foi se casar com alguém tão imbecil!? É, mas esse chocalho que ele tem na mão é bem legal. Me dá. Me dá aqui. Isso. Quer saber, eu tô morrendo de fome. De chocalho ninguém vive. Que estranho! Eu nunca senti fome antes! Mas também, olha aqui, eles cortaram meu umbigo! Como é que eu vou comer agora, meu Deus?”.

Não é à toa que você adora sua mãe. Ela ficou com você desde quando você nem era você e, agora que lhe cortaram fora o umbigo, ela inventou um jeito de alimentar você com os seios. E pensando bem, esse método é bem melhor que o outro...

“Tá bom. Quem foi o engraçadinho que colocou esse negócio pesado e fedido na minha fralda, hein? Aposto que foi o cara de bigode que se diz meu pai. Ah, ele me paga. Aí, bigodudo, arruma uma fralda limpa que esse negócio incomoda... Minha mãe é demais. Já percebeu que eu tô cagado e vai me trocar. Como ela sabe o que eu quero? Ontem mesmo, quando eu estava prestes a explodir depois da mamadeira, ela veio e me deu uns tapas nas costas. E o do bigode morreu de rir do barulho que eu fiz com a boca. Depois me pegou no colo, brincamos com o chocalho, ele me jogou para cima várias vezes, eu vomitei na camisa dele... essas coisas. Aí, do bigode, até que você é bem legal, sabia? Acho que você pode mesmo ser meu pai!”.

— Você ouviu, mulher? Ele falou “papá”!

— E já me chamou várias vezes de “mamã” também!

— Esse é o meu garoto!

— Que lindinho!

Os pais, via de regra, são bobos mesmo. Mas é um tipo de bobagem saudável, gostosa, fundamental à vida. Sempre estão lá para fazer tudo para você. Você vai crescendo, sua mãe vai ficando grisalha, enquanto seu pai prefere abrir mão dos cabelos a tê-los brancos.

Quando você menos espera, começa a sentir uma sensação diferente ao ver a filha de uns amigos do seus pais. Você não sabe descrever — você mal sabe falar! — mas existe alguma coisa entre vocês dois. Provavelmente, mais uma das inúmeras provações a que a vida nos submete.

Quatro e meia



Quatro e meia da manhã, num apartamento do edifício em frente a uma movimentada avenida da cidade. A mulher desesperada acorda o marido no meio da noite, incomodada.

— Você ouviu?

— ...

— Benício, você ouviu?

— Ãh?

— Acorda, Benício. Você está escutando?

— Não...

— Benício!!!

— Escutando o quê?!

— Presta atenção... Ouviu agora?

— Não tô ouvindo nada.

— Não é possível! Você está dormindo!

— Não, eu estava dormindo. Agora que você me acordou, estou acordado. Mas continuo não ouvindo nada.

— Só se você for surdo! Ou mentiroso!

— Aninha, são quatro e meia da manhã, eu estou cansado, com sono, vou levantar cedo. Por que eu iria mentir a esta hora? Se eu estivesse ouvindo alguma coisa eu diria, depois voltaria a dormir. O que é que tem pra ouvir?

— ...

— Espera. Vou botar os óculos.

— Eu disse pra você escutar, não pra olhar nada.

— Eu sei! É que eu escuto melhor de óculos.

— Não vai acender a luz?

— Claro que não! Eu não vou olhar nada. Só vou escutar.

— Mas...

— Pssssiu. Quieta que agora eu quero ouvir. Não volto a dormir enquanto não conseguir ouvir alguma coisa.

— ...

— Desisto. Eu devo ser surdo mesmo: continuo não ouvindo nada! Eu vou dormir. Droga! Amassei meus óculos. Se acontecer alguma coisa importante você me acorda.

— Olha aí... continua. Ainda não reparou?

— Não! Mas o que é que você está ouvindo afinal? Eu não ouço nada, mulher!

— É esse silêncio! Um silêncio constante, ensurdecedor! Como eu nunca tinha ouvido antes na minha vida...

No meio da madrugada, a mulher acostumada a perder o sono por causa do barulho noturno da cidade fica sem dormir para aproveitar ao máximo o prazer raro que o silêncio lhe proporciona.

Apolinário, o homem de palavra



Logo que os primeiros raios de sol iluminavam o dia, Apolinário — o homem de palavra, como ele mesmo se intitulava — levantava-se, fazia o café e lia o jornal, entre um gole e outro.

Apolinário era ascensorista havia 23 anos, num mesmo edifício no centro da cidade. Sempre tranqüilo, era notório por dar valor à sua palavra, qualidade em desuso há muito tempo. Para Apolinário era uma questão de honra:

— Se alguém me conta um segredo e eu dou palavra de sigilo, é garantido que não conto; nem se nosso senhor Jesus Cristo encarnar e me pedir pra dizer. Que Deus me perdoe, mas não digo, nem pra Ele. Senão não fico em paz comigo mesmo...

E era verdade.

Numa manhã chuvosa, um homem sinistro metido até as orelhas num sobretudo preto, entra no elevador de Apolinário.

— Décimo sétimo andar, por favor.

— Pois não.

Sozinhos no elevador, o desabafo do homem inconscientemente provoca os brios do ascensorista.

— Se lhe contar um segredo o senhor promete que guarda?

— Pode apostar minha vida com o Cão como ninguém saberá, moço!

— Minha esposa tem consultório aqui. No 172. É ginecologista. Descobri que tem um amante. E não é de hoje. Nem é invenção maldosa das pessoas. Eu vi os dois juntos. Ninguém me contou, en¬tende? Eu vi os dois trocando beijos num lugar que eu nunca desconfiaria! E na boca também! Ela diz que fica trabalhando até altas horas, que marca consultas até mais tarde para manter algumas clientes antigas e boas... tudo mentira. Hoje resolvi seguir a vagabunda e vi quando ela parou para pegar um homem que a esperava na esquina. Até aí, poderia ser um colega pedindo carona. Mas depois foram para um motel. É pouco provável que um homem sozinho tenha marcado consulta com uma ginecologista e logo num motel! Ficaram horas lá dentro. Comigo, ela fazia rapidinho. Às vezes ela tinha a coragem de me ligar, com ele do lado, a cama ainda quente, e dizer que ia demorar. Que a cliente estava muito abalada com o resultado de uns exames... Não dá mais. Tenho que terminar com essa palhaçada. O senhor me entende? Não posso viver com isso.

Apolinário ouvia sem comentar nada. Limpando as lágrimas, o homem traído continua, agora num tom de cobrança.

— O senhor vai me prometer que não dirá a ninguém que me viu! Está bem? Responda! — sacudindo Apolinário pela gola do uniforme.

— Tudo bem, moço! Não digo nada. Palavra.

— Não sei bem o que vou fazer. Talvez eu...

— Décimo sétimo!

— Obrigado. Passar bem.

— Não por isso. Tenha um bom dia.

Temendo o pior, Apolinário desce o elevador ao térreo pensando na angústia daquele homem estranho, para quem o peso da traição era maior que o de uma tragédia. No décimo terceiro, ouvem-se tiros vindos de cima.

A ambulância chegou tarde. A ginecologista já estava morta, com três balaços no peito. Ao lado da traidora jazia o corpo do marido assassino e suicida. No bolso do sobretudo, um bilhete com os dizeres: “Melhor assim”.
No saguão do prédio, os investigadores de polícia interro¬garam Apolinário:

— O senhor tem certeza que o homem não lhe disse nada no caminho que pudesse despertar suspeita? Nada confessional, sombrio?

— Não, senhor. Não no meu elevador. O senhor pode apostar minha vida com o Cão como não me disse nada. Não tenho nada a declarar.

Antes de partir, o delegado fez um último pedido:


— Aqui está meu telefone. Se o senhor se lembrar de alguma coisa, se quiser dizer algo, pode ligar sem medo. Às vezes as pessoas só lembram de coisas mais tarde.

Mas ele não tinha nada a dizer. Apolinário se orgulhava por ter princípios e preferia passar por cima das leis dos homens a quebrar sua palavra com Deus.

A essência do pensamento filosófico



Às vezes quando ouvimos um intelectual falando sentimos que somos verdadeiros paquidermes. Aos paquidermes que não sabem nem mesmo o significado do que seja ser intelectual deixo aqui uma definição simples, de paquiderme para paquiderme.

O intelectual é aquele sujeito que leu muito mais que a média das pessoas normais (ou paquidermes) e por isso sabe coisas que nós, paquidermes, precisamos consultar numa enciclopédia. E, porque sabe mais, acredita que tem o gosto mais apurado e a mente mais aberta que os outros humanos. Só não tem a alma mais pura e elevada que a nossa porque intelectual que se preza é ateu ou agnóstico e, em qualquer das duas hipóteses, não acredita na existência da alma. Nem acredita em espírito, destino, carma, essas coisas de paquiderme. Por incrível que pareça, quanto mais intelectualizado o sujeito, menos ele confia nas coisas e nas pessoas. Ser intelectual é duvidar da existência do próprio pâncreas. Em resumo, intelectual é o sujeito que discorda.

Pensando em minha espécie ‘paquidérmica’ — não corrija os termos que uso: você corre o risco de estar virando um intelectual! —, resolvi escrever uma série de textos curtos que resumem, em poucas palavras, o pensamento de alguns dos grandes pensadores da história mundial. O primeiro da série vai agora mesmo e apresenta as idéias de alguns filósofos.

PLATÃO (428-347? aC)

Era um filósofo de Atenas. Não, ele não era inseto. Eu disse Atenas, não antenas. Ele era grego, pronto. Viveu cinco séculos antes de Cristo. O que não significa que ele tinha quinhentos anos de idade quando morreu! Nem foi assassinado por Cristo, meu Deus! Não foi isso que eu disse! Eu quis dizer que ele nasceu mais ou menos em meados do século quinto A.C., em Atenas.

Platão escreveu uma série de diálogos nos quais dava a palavra a Sócrates, de quem fora discípulo. Não, não havia futebol nessa época. Este Sócrates é outro.
Platão também desenvolveu um método para convencer as pessoas das coisas em que acreditava chamado Dialética. Segundo esse método, você tem que ser chato, discutir tudo e ser sempre do contra para chegar na verdade. Através da oposição e da conciliação de contradições lógicas ou históricas pode-se descobrir a verdade, pensava o filósofo.

Aí mataram Sócrates, aquele que lhe serviu de inspiração, e Platão resolveu baixar a bola e viajar pelo mundo. Lógico que não visitou o Brasil! O Brasil não existia naquela época.

Mesmo desiludido, o filósofo não abandonou a dialética. Não, ele não engordou depois disso! Isso não tem nada a ver com baixas calorias. É Dialética, não dietética. Deixa pra lá, vai...

SÓCRATES (469-399 aC)

Já falei que não é o ex-jogador de futebol! Ele é mais velho que o Platão e nem escritor ele era! Era filósofo. Só se sabe das coisas que pensava porque Platão, aquele, citou várias vezes seu mestre em seus diálogos e comédias.

Aliás quem ensinou Platão a usar a Dialética foi justamente o Sócrates. Ensinou mais ou menos, porque não gostava de nenhum ensinamento dogmático, como outros filósofos costumavam fazer. O que ele fazia era forçar o aluno a descobrir as coisas sozinho. Como? Sócrates fazia tantas perguntas, deixava o pupilo tão em dúvida sobre tudo, tão maluco, que ou o cara se matava, ou aprendia por conta própria e parava de perguntar as coisas para ele. Acho que ele mesmo não sabia de nada. Mas para não dar o braço a torcer e admitir a própria ignorância, Sócrates fingia que era um método não-dogmático de ensinar filosofia e deixava os discípulos esclarecerem sozinhos suas questões.

Resumindo, foi o primeiro professor ranzinza que deu certo... É claro que eu tenho certeza que ele nunca jogou no Coríntians...

DESCARTES (1596-1650)

René Descartes, cuja influência na filosofia moderna e na ciência é incomensurável, estava na Suécia ensinando filosofia à Rainha Christina (1626-89) quando contraiu pneumonia e morreu. Claro que ele não ficou famoso apenas porque morreu, nem por ter sido professor de uma rainha. Só resolvi contar isso logo de cara para mostrar que filósofo também é gente e, como tal, morre.

Descartes era excelente matemático, tanto que inventou o conceito de potências, a geometria atual e um sistema de coordenadas amplamente utilizados na física e na matemática.

Como filósofo, no entanto, era meio pentelho. Não acreditava em nada que não fosse devidamente certo e indubitável. Daí, começou a questionar as coisas até descobrir evidências que comprovassem a veracidade daquilo que ele punha em dúvida. O problema é que ele questionava coisas extremamente banais. Por exemplo: como saber se estou ou não sonhando? Onde estou? Quem sou eu? Quem matou Odete Hoitmann? Sua máxima era dizer: “penso, logo existo”.

Alguns pesquisadores acreditam que se Descartes não tivesse morrido de pneumonia, a própria Rainha Cristina teria matado o infeliz.

DIDEROT (1713-1784)

Filósofo, autor e crítico francês, Denis Diderot tornou-se notório por ser o editor chefe da Enciclopédie francesa. Também ficou conhecido pelos homens de seu tempo por ter escrito alguns ensaios clandestinos, cujo conteúdo impregnado de ateísmo levou-o à prisão por alguns meses. Naquela época, misturar palhaçada e religião além de não vender CD ainda dava cadeia. Outros tempos, outros tempos...

Escreveu novelas e sátiras, com muito humor, que só foram considerados bons após sua morte. Já naquela época algumas pessoas ficavam famosas somente porque morriam.
Seu apelido entre os amigos era Le Philosophe, que apesar de parecer coisa de boiola, quer apenas dizer ‘o filósofo’. Provavelmente, seus amigos eram todos metidos a intelecuais também. Senão, por que colocariam um apelido desses, ‘o filósofo’, em vez de alguma coisa mais prosaica e menos arrogante, como ‘Didi do gogó’, ‘Denis, o pimentinha’, ou qualquer outra coisa desse tipo?
Além do francês, sua língua materna, escrevia em grego, latim, italiano e inglês, com igual competência.

Paradoxalmente, suas composições mais apreciadas nos dias de hoje são suas correspondências — em torno de mil cartas — com Sophie Volland, sua provável amante. O que prova que, já naquela época, o público só pensava em sacanagem.

NIETZSCHE (1844-1900)

Friedrich Nietzsche era uma das figuras de maior influência no pensamento filosófico alemão. Não por que fosse o único filósofo na época, tampouco o único alemão. Acho que é porque as pessoas acreditam que alguém com coragem suficiente para usar um bigode daquele tamanho seguramente tinha muita convicção de que suas idéias o salvariam do escárnio público.

Seu primeiro livro era uma espécie de mitologia pagã, em que se apresentavam dois elementos distintos da natureza humana: o Apoloniano (racional) e o Dionisíaco (passional). Misturando-se esses dois elementos a humanidade atingiria um estágio de harmonia com os deuses. Ou seja: quer pensar, pense. Mas não deixe de cair na “gandáia” por causa disso...

Seu principal trabalho, no entanto, foi Assim falou Zarathustra, no qual o escritor critica o Cristianismo e Democracia, de uma vez só, chamando-os de moralidades da plebe medíocre. Argumentando em favor da aristocracia natural do “super-homem”. Não, ele não usava capa vermelha. Aquele é outro Super-Homem. Aliás, esse negócio de chamar homem de “super” nunca me cheirou muito bem...

Este tal “super-homem” do Nietzsche era movido por um “desejo do poder”, ainda existente no mundo materialista, e atribuia a vida na terra a uma graça divina. Aliás, achar as coisas “divinas” também parece coisa de baitola...

Quem?! Que Lois Lane? Eu já não disse que esse “super-homem” do cara não é o Clark Kent !!!...

Namoro I: a descoberta do amor



É duro ter dois anos e não poder decidir nem opinar sobre questões básicas, tais como o que vestir, onde ir e com quem, quando comer e o que comer, esse tipo de coisas. Sentado naquele carrinho de bebê, o pequeno Jonas não tem muito para fazer, além de olhar as pessoas que passeiam no parque, fazer xixi e cocô.

Ainda que bebê, já percebe uma grande diferença entre ele e as pessoas que observa. Nenhuma delas está atada a um carrinho ridículo, controlado pela mãe, vestindo jardineira jeans, camiseta com a cara do Pluto de língua de fora e boné de um time de futebol que o pai insiste em dizer que é o melhor, embora sempre perca os jogos. Os outros andam livres, decidem seu próprio caminho, tiram parte da roupa quando sentem calor. Alguns ficam tão empolgados com o poder de livre arbítrio que dão muitas voltas em torno de uma faixa branca pintada no chão do parque. São tão bobos que não percebem que a faixa termina no ponto inicial e que estão andando em círculos. Os mais espertos percebem que estão andando em círculos, mas em vez de sair da pista apertam o passo.

“Por que minha mãe não avisa aquelas pessoas de que não vão chegar a lugar nenhum daquele jeito?”

Conceitos como segurança e responsabilidade estão presentes no seu dia a dia, perpetuados por seus pais, mas não estão claros na sua consciência do pequeno Jonas. Afinal, tem apenas dois anos, muita fome, muita curiosidade e uma disposição inacreditável para chorar e sujar as fraldas.

A mãe leva o pequeno Jonas para passear todas as manhãs naquele mesmo parque. Perfaz um caminho que lhe parece o mais apropriado: é seguro, sem obstáculos, linda paisagem, brisa agradável e sol ameno, excelente para o guri. Outras mães também optam pelo mesmo caminho. Uma delas, leva a pequena Vanessa num carrinho, perfazendo o mesmo trajeto que a mãe do pequeno Jonas, porém no sentido oposto.

Crente de ser o único da espécie humana a andar de carrinho, o pequeno Jonas começa a planejar um levante. Não que fosse ruim sua situação. É que o espírito revolucionário não está nos livros mas no indivíduo, desde a mais tenra idade. Só não sabe como por em prática seus ideais anti-reacionários porque, isso sim, está nos livros. Mas o pequeno Jonas descobrirá um dia.

Caminhando em sentidos opostos sobre uma mesma trajetória fechada era inevitável o encontro do pequeno Jonas com a pequena Vanessa. Também inevitável era que surgisse identificação entre os dois pequeninos. Ambos estavam na mesma situação: presos e intrigados.

A imagem da menina era menos bela que gratificadora para o pequeno Jonas, uma vez que o chapeuzinho rosa que deitava a cabeça da menina era simplesmente idiota. Mas o fato de ser uma igual, uma infante segregada, sujeita à submissão materna e à completa impossibilidade de escolha, gerava um turbilhão de sensações inéditas e boas na mente do pequenino. Aquela era uma possibilidade imprevista muito interessante: finalmente Jonas encontrara alguém para compartilhar sua mamadeira, seu choro, seu mal cheiro oriundo da fralda e suas imaginações.

Mas durou muito pouco o encontro. O tempo exato para se olharem, se gostarem e partirem.

O pequeno Jonas era esperto e bem-humorado, seria fácil conquistar a pequena Vanessa. Passou o percurso inteiro com a imagem da menina estampada em sua retina, pensando no que dizer. Ele tinha que ser objetivo, pois a situação era importante. E conciso, pois o tempo era mínimo. As palavras não lhe vinham à mente e quando vinham, não serviam. Com dois anos não se conhecem palavras e conceitos, apenas comandos. Ele sabia como chamar a mãe e o pai, o nome de alguns bichos e da comida preferida. Sabia imitar alguns sons que ouvia e achava engraçados, mas não podia expressar sentimentos complexos como aquele que descobrira há pouco. Quando a sensação era ruim, ele chorava. Quando boa, ria. Nada além de comandos. Agora, precisava mais do que tinha.

A lanchonete era um aviso para ele: significava que logo ali na frente encontraria novamente sua amada. E de fato, alguns passos depois, reencontrou a pequena Vanessa, vindo na sua direção. Era hora de agir, embora não tivesse conseguido planejar nada. Improvisou, de forma intuitiva, erguendo os bracinhos, tentando alcançá-la. A mãe observou o gesto e promoveu um encontro rápido, desviando o carrinho da trajetória original. A mãe da pequena Vanessa fez o mesmo.

As mães se apresentaram, falaram sobre o dia, sobre o trabalho que os filhos dão, sobre suas profissões e as dos maridos, trocaram receitas e comentários elogiosos sobre os filhos da outra, enquanto os pequeninos se olhavam. Não havia mais a preocupação do que dizer, nem qualquer outra. Tudo o que os dois queriam era ficar ali se olhando, se conhecendo.

Psicólogos defendem que o ser humano é capaz de amar muito tempo antes de ter consciência do que seja o amor. Isso explica como o bebê é tão apegado à mãe, sua primeira amante.

E os passeios no parque nunca mais foram tediosos para o pequeno Jonas, que agora já sabia o que era amor. Depois daquele dia, nunca mais reencontrou a pequena Vanessa, pois a menina se mudara do bairro, mas teve, de uma só vez, seu primeiro encontro e sua primeira decepção amorosa.

Consultório



— Sr. Carlos, tenha a bondade...— chama a secretária.

Eu seria o próximo.

Estava sentado num daqueles sofazinhos de consultório. Daqueles que por incrível que pareça já fizeram parte da sala de alguém. Depois, quando o proprietário percebeu que o sofá não era apenas desconfortável mas também assustava as visitas, foi passado para a frente. Nada melhor que mandá-lo para um consultório, considerando que seus freqüentadores não são visitantes, mas clientes inabaláveis (se o barulho que vem de dentro da sala do dentista não assusta a clientela, não será um sofazinho amarelo que causará esse efeito!). Aliás, esse deve ser o maior dilema do profissional liberal que abre um consultório e não tem dinheiro para mobiliá-lo decentemente. Sim, porque não se pode ter controle sobre o mal gosto dos outros, que dirá sobre o refugo alheio.

Apesar de estar sentado na prova irrefutável da existência de adep¬tos da deplorável moda dos anos 70 (feche este livro se você não lamenta a moda desse episódio caótico e conturbado da nossa história recente), estava muito feliz relendo uma Manchete de 86, sabendo que o Sarney presidente era coisa do passado. Eu nem sabia que aquela revista existia a tantos anos.

Tenho a impressão de que as revistas de consultório são fabricadas especialmente para provocar a resignação do cliente diante da inexorabilidade do tempo, que corrói o vigor, amolece a pele e intensifica o efeito gravitacional sobre as pessoas (envelhecendo as revistas também). O cirurgião plástico pode aproveitar o impacto causado por elas em seu favor e vender uma recauchutagem nos seios, um nariz novo e menor, uma sucção de lipídeos ou uma remoção de pelancas no pescoço. O oftalmologista pode reforçar sua tese sobre a necessidade de óculos novos, e talvez uma cirurgia de catarata, alegando que aquelas revistas são recém chegadas. Até o dentista pode argu¬mentar que a gengivite ou a inflamação da raiz do segundo molar podem trazer delírios visuais como sintoma (e aproveita para recomendar um oftalmologista, amigo dele). Do geriatra nem se fala... Já o clínico geral faz uma vistoria completa no paciente e profetiza:

— Pode ser uma virose.

Não sei exatamente a definição médica para virose, mas conheço uma empírica: virose é o agente causador de um mal estar temporário (febre, cefaléia, fraqueza) e sem maiores conseqüências, que aparece sem¬pre que o médico não sabe o que o paciente tem.

— Doutor, tenho febre, dores de cabeça e cansaço. Às vezes vem, às vezes vai.

E o médico, seguro:

— Pode ser uma virose.

Mas por mais que nós, leigos, fiquemos insatisfeitos pela imprecisão do diagnóstico, devemos dar o braço a torcer e reconhecer que normalmente eles têm razão. É apenas uma virose. Seja lá o que isso signifique.

Enquanto espero minha vez de ser atendido, penso nas coisas que podem ter levado aquelas pessoas até lá.

A moça do nariz vermelho e lenço na mão traz uma ex¬pressão de sofrimento que transborda um simples quadro de corrimento e tosse. Deve ter inflamação. Ou talvez apenas uma virose bem forte.

O pé quebrado do menino certamente não é virose. Nem o olhar enternecedor do homem sobre a cabeça imberbe da esposa. O mal que acomete a pobre mulher é infinitas vezes mais mordaz do que a virose e requer tratamento quimioterápico. O casal se olha, sorriem, abraçam-se. A cena culmina num torpor consciente e conformado, trazendo à minha memória o saguão de um pronto socorro.

* * *

Entro no saguão do PS com meu irmão. Estávamos lá por minha causa: cefaléia e febre intermitentes, havia quatro dias. O feriado prolongado me levou direto ao PS e não ao consultório, como de costume. Logo na entrada, um aviso: "Retire uma senha e aguarde sua chamada pelo monitor". Era comigo. Peguei uma senha. Por sorte, apenas um número acima do mar¬cado no monitor. Breve, chamaram meu número e solicitei ao atendente uma consulta a um clínico geral. Se tivesse dito os sintomas, acredito que o próprio atendente me alertaria:

— Pode ser uma virose.

Novo aguarde: espero agora a chamada do médico, ou da médica. Enquanto isso, não posso deixar de reparar nas pes¬soas que compartilham da mesma paciência que eu naquele recinto.

Um senhor de aparentes 60 anos lê, pacientemente, uma pequena revista. Parece ter ascendência nórdica ou ariana, e muito provavelmente judaica. De tempos em tempos, fecha a revista, levanta-se, vai até a porta, observa o movimento dos carros. Depois, retorna ao mesmo lugar, abre a revista no ponto em que parou e retoma a leitura fleumática.

Ao seu lado um casal jovem se diverte com um bebê. O rapaz as¬sopra as pequenas bochechas, roubando risos soltos do menino, provocados por aquele barulho. A mãe avaliza o carinho com seu olhar de mãe.

— Acompanhante de senhor Paulo Vasquez... — inquire a en¬fer¬meira, fazendo levantar-se uma senhora baixinha, idosa, porém sadia. — Acompanhante de...

— Aqui! Estou indo. — responde a disposta velhinha.

Noutro canto do salão, vê-se o desespero mal controlado de uma mulher contorcendo-se de dor. O semblante confirma a intensidade. Não há nada que ela, ou qualquer pessoa, possa fazer, a não ser esperar.

Os acompanhantes fingem tranqüilidade diante do fato de seus parentes já terem sido atendidos.

O judeu se levanta para outra esticada de pernas.

— Uma maca, pelo amor de Deus, que a pessoa não pode se movimentar! — suplica afoitamente a voz que invade o PS num repente. A superficialidade do meu mal estar me dá franca vontade de ir embora, mas fico.

Uma maca com um senhor ligado ao soro atravessa a tristeza disfarçada das pessoas do saguão. A seguir, uma cadeira de rodas traz uma senhora irritada, depois de ser atendida. Dirige-se ao atendente:

— Você pode conseguir o telefone do Doutor Van Der Lei — não era esse o nome, mas era nitidamente alemão. O judeu se le¬vanta e, ordenado pela mesma mulher, vai providenciar o carro para irem embora.

— Infelizmente eu não posso conseguir esse telefone porque esse médico não é deste hospital — responde, meio sem jeito, o atendente.

— Quer dizer que se eu passar mal à noite eu não terei como ligar pra ele!? — irrita-se injustamente com o funcionário.

— É que nós só temos os telefones dos médicos deste hospital! — de¬fende-se.

— Eu sei! Mas ele é o meu médico há anos! — argumenta inconsistentemente, já aos berros.

— Mas eu não tenho como saber o telefone dele. Eu teria que ligar para o hospital onde ele trabalha para ver se eles me fornecem o número.

— E você não pode fazer isso!? — exige, como se fosse uma obri¬gação recusada.

Para se livrar do aborrecimento, o jovem procura obter a informação, fugindo completamente ao seu serviço. Finalmente, após vários telefonemas, obtém o número e tranqüiliza a senhora.

O judeu retorna e a leva para o carro. Nessa hora, a secretária da dentista chama um nome, não o meu, levando minha mente de volta ao consultório.

* * *

— Sr. Jorge, a doutora vai atendê-lo agora.

Eu seria o próximo.

A primeira imagem que me vem após meu retorno mental ao consultório é a da mulher na minha frente, que entrara enquanto eu estava dis¬perso. Atônita, procura desesperadamente alguma coisa dentro de sua bolsa. Não encontra. Vira a bolsa sobre o sofá (aquele mesmo, o amarelo dos anos 70), expondo-se aos demais clientes. Afinal, a bolsa de uma mulher pode revelar informações que anos de divã não conseguiriam obter.

Havia batons, lápis e uma completa linha de produtos de maquilagem. Um absorvente. Sem uso, é claro. Papéis dobra¬dos. Camisinhas. Uma agenda com páginas dobradas e, pelo volume, repleta de recortes de revistas colados estrategicamente. Analgésicos (para combater uma eventual virose) e vi¬taminas. Clipes, uma tesoura, anéis, mais papéis dobrados, elásticos de cabelo e grampos. Canetas, cartões e uma carteira de documentos. Lembrava, no que diz respeito à desorgani¬zação e não aos itens, minhas gavetas da mesa do quarto. Só que eu não uso absorventes.

Levantou a cabeça quando se deu conta da ausência do objeto procurado:

— Mas eu tenho certeza que pus na bolsa. — desconsolada. —Tenho certeza, meu Deus!

Olha para mim e, percebendo que nada podia ser feito para alterar o fato de que sua certeza era equivocada, abaixa a cabeça, colocando seus pertences de volta na bolsa como quem limpa uma ferida.

Levanta-se e sai, desconcertada. Provavelmente, sem aquilo que ela procurava não poderia consultar-se. Vai abrindo a porta e, antes de sair, dá uma última olhada para mim. Eu?? O que eu po¬deria fazer? Nada. Era apenas um olhar choroso pedindo por consolo, compaixão.

Ficamos apenas eu e um senhor que desde sua chagada lutava con¬tra o sono. Pendia a cabeça, cochilava e, quando acor¬dava, esboçava uma expressão de naturalidade, como se Orfeu não lhe chamasse. Pelo menos estava tranqüilo. A proximidade de sua consulta não lhe sobressaltava, o que também era um bom sinal.

O ir dos anos (e das pessoas queridas) desenvolve uma estra¬nha cumplicidade entre os desconhecidos nos con¬sultórios, hospitais e cemitérios. Todos sabemos o que nos espera. É apenas uma questão de tempo.

— Sr. Paulo, é a sua vez.

Eu seria o próximo. Talvez.

Não flambem a salsicha de Hermann



Hermann era do tipo sisudo, casmurro. Não se deixava abalar por nada. Ou quase nada. Do alto de seus quase dois metros de altura, poucas situações que Hermann presenciava eram capazes de alterar sua fleuma nada germânica. A maioria delas dizia respeito à sua salsicha.

Certa vez um colega de escola — isso faz um bom tempo, Hermann já terminou a faculdade — entrando no refeitório cujo chão havia sido recentemente encerado, escor¬regou e caiu, projetando sua bandeja com o almoço na infeliz direção de Hermann. Hermann olhou para o colo e viu a calça do uniforme ocre coberta pela sopa verde de ervilhas. Não moveu um dedo. Nem a sensação pastosa e o desconforto tér¬mico que acometiam suas par¬tes pudendas puderam alterar seu temperamento aparentemente pacífico. O garoto descuidado, morrendo de medo daquele que já era o maior aluno do colégio, também não conseguia se mexer, embora parecesse que Hermann não houvera levado o incidente a sério. Ao levantar a vista, no entanto, Hermann observou sua salsicha — ele sempre comeu salsicha em todas as refeições — submersa num rio de refrigerante dietético também oriundo da bandeja desorientada. Hermann levantou-se, dirigiu-se ao garoto prostrado no chão e disse, num tom grave, antecipadamente fúnebre:

— Ninguém zomba da minha chalchicha e sobrevive...

Na manhã seguinte, o clima no velório não poderia ser pior. A perda de uma vida inocente e jovem parecia não ser ver¬dade. Mas era. O pai de Hermann conseguiu encobrir o caso dando-lhe o caráter de acidente, graças à sua amizade com o delegado Peixoto, o encarregado do caso. Mesmo assim, Hermann teve de ser transferi¬do do colégio e seu pai, militar reservado, mandou-o para o exterior, numa série de intercâmbios mal sucedida.

Nos países da Europa, incidentes semelhantes envol¬vendo terceiros com a salsicha de Hermann culminaram em tragédias de igual monta. Às vezes, um sortudo escapava da morte, mas nunca da invalidez irreversível. Os contatos de seu pai rompiam horizontes e limites de justiça e moralidade mas não eram infindáveis. O mili¬tar começava a não saber mais a quem recorrer ou o que fazer para corrigir a conduta do filho, sem que este tivesse que pagar por seus crimes.

— Hermann, meu filho, te orienta! — dizia o pai, numa cres¬cente desesperança.

Nos Estados Unidos, a última esperança de seu pai, Her¬mann não conteve a fúria quando teve sua salsicha der¬rubada por um guri americano num movimentado fast-food nova-iorquino:

— Nobody plays with my shaushage and remains alive...

Sem outra alternativa, o pai de Hermann trouxe o filho de volta ao Brasil, país onde o menino nascera e fora educado. Porca¬mente educado, é verdade, mas fora. Seu pai não cansava de im¬plorar ao filho:

— Hermann, meu filho, te orienta!

Após uma longa conversa com Hermann e decorridos al¬guns meses, seu pai recobrou a fé de que Hermann teria sal¬vação. Anos se passaram sem que Hermann fizesse nova vítima. Formou-se, finalmente, em Ciências Sociais. Seu pai, crente na regeneração do filho e agora doente e desenganado pela medici¬na, sentia-se mal por ter de deixar a vida, mas satisfeito pela certeza do dever cum¬prido. Mal sabia que a saga de Hermann não havia terminado. É que Hermann não freqüentara lanchonetes nem restaurantes no período de convalescência de seu pai e, por isso, não cometera outros homicídios.

O pai morre. Agora, depois da perda do progenitor, Her¬mann pode voltar a sair e fazer o que mais gosta: comer sua sal¬si¬cha. E assim recomeça a saga de Hermann.

* * *

Hermann abre o jornal, procura o caderno de gastrono¬mia e folheando-o, encontra o primeiro alvo de seu desejo de comer salsi¬chas. Era uma choperia chamada Chope e Batata Fritz. O dono, o Batata do nome, é um bem-humorado italiano que veio para São Paulo na década de 60 e o pouco dinheiro que conseguiu juntar foi aplicado na choperia. O Fritz do nome era jogada de marketing. Pensou até em abrir uma cantina mas achou que a choperia se¬ria mais negócio.

Era um lugar simples mas elegante. Despojado porém agradável. Tranqüilo e bem freqüentado. Parecia ser o ambiente ideal para Hermann matar a saudade da salsicha.

Os amigos de faculdade de Hermann tinham feito uma re¬união na época da morte de seu pai, na qual decidiram que iriam se revezar para cuidar que Hermann não fizesse mais víti¬mas. Desse modo, Grashof e Nusselt, seus únicos amigos re¬manescentes mon¬tam vigia alternada sobre Hermann.

Grashof segue o Opala de Hermann em sua Saveiro ver¬melha. Chove. Chove muito. Incessantemente. Grashof teme perder o Opala e não conseguir evitar o pior. Na porta do Chope e Batata Fritz, o Batata recebe sorridente os fregueses, enquanto distribui toalhas:

— Vamo intrano chi a casa é di voceis tutti! — dizia o Batata, que não é um bom articulante do nosso idioma mas é certa¬mente um excelente anfitrião.

Grashof entra minutos depois de Hermann pois não en¬con¬trava lugar para estacionar. Na entrada, Grashof pergunta, tomado pela ansiedade e pelo desespero:

— O Hermann já foi servido?

— Má chi Hermann? Noi num servimo Hermann aqüi. Só servimo chopes e salsicha. Di vez in cuano, un chiocolato no inverno, junto con o cafezinio, má é só.

— O Hermann não é de comer, meu senhor. Quero dizer, se é, ou não, é problema dele... Eu estou procurando um amigo meu. Bem alto, alemão...

— Ah, eco! Ele pediu unas salsichas má já devi di tá sendo servido agora.

— Meu senhor...

— Seniore non, por favore. Mi chiamano di Batata.

— Batata... como vocês servem a salsicha aqui?

— Ora má como?! Noi flambamo, é chiaro!

Nos anos em que Hermann se ausentou do mundo gas¬tronômico paulistano, muitas coisas mudaram. Uma delas foi a salsicha. A culinária moderna, forte¬mente influenciada pela Nouvelle Cuisine Francese, aderiu aos costumes incendiários do país de Joana D'arc e começou a servir a salsicha — que na tradição alemã deveria ser simplesmente co¬zida em água fer¬vente — completamente flambada num bom vinho branco. Para Her¬mann, que não havia tolerado nem refrigerante dietético na sua sal¬sicha de menino, o processo de flambagem na vida adulta seria considerado um crime capital cuja pena mínima estaria entre a decapitação e a empalação a frio.

— Não flambem a salsicha de Hermann! — suplicou Grashof na tentativa vã de evitar um desastre.

No entanto, o garçom já se aproximava de Hermann, que estava ansioso pela chegada do tão precioso quitute, achando tratar-se de salsichas tradicionalmente cozidas. Mas nas mãos do aspirante a mâitre estavam duas gordas, tenras e graúdas salsichas de ganso flambadas ao vinho branco. Sim, salsichas de ganso. O porco só servia para fazer gelatina de bisteca com chantilly, outra novidade da culinária moderna.

Rapidamente, Grashof voa sobre o garçom. Antes que o conjunto garçom mais bandeja mais salsicha mais Grashof chegue ao chão, este último agarra com volúpia as salsichas e as leva à boca, encaixando-as uma de cada lado da arcada dentária, entre as gengivas e as bochechas.

Hermann, estarrecido, questiona o amigo sobre aquela ati¬tude. Queria saber, na verdade, se o amigo estava zombando com suas salsichas.

— Estas não eram as suas salsichas, Hermann — disse Grashof após engoli-las quase inteiras, o que dificultaria bastante seu processo digestivo. — Eram as minhas salsichas, as que eu ha¬via pedido por telefone. E se eu não chegasse a tempo esse garçom teria se equivocado e entregue as salsichas erradas a você.

Hermann era burro. Muito burro. Incessantemente burro. Demorou certo tempo para que ele entendesse a versão contada pelo amigo, mas acabou aceitando.

— Ninguém zomba com a minha chalchicha. Nem você. Mas se era a sua chalchicha, tudo bem.

Hermann e Grashof saem juntos do restaurante, depois de terminarem o jantar, no qual serviram salsichas especiais para Hermann. Enquanto este pensava na história contada pelo amigo, Grashof teve tempo suficiente para explicar a situação ao garçom, ao Batata e ao cozinheiro, que, por ser um antigo mestre-cuca alemão, ainda conhecia aquela velha forma de preparar as salsichas, já em desuso. Despedem-se e vão para as respectivas casas. Grashof toma sais de frutas no caminho.

* * *

O segundo estabelecimento procurado por Hermann o recebe com certo des¬caso. Essa noite era a vez de Nusselt vigiar o amigo assassino.

“Este é um daqueles lugares onde ser cliente não é mais do que obrigação, na opinião do dono”, pensa Hermann.

O ambiente é diferente dos restaurantes convencionais. Na recepção há um balcão com uma recepcionista muito maquiada, gorda, desajeitada e insatisfeita.

“Que lugar esquisito! — pondera. — Essa luz vermelha, o néon da fachada dizendo Relax. Só falta eu ter me metido numa fria. Mas o anúncio do jornal despertava grande expectativa: ‘Crioulo. Atlético. 10 anos de experiência. Salsicha enorme. No Relax, a partir das 10:00 horas da noite’. Talvez tenham mudado de dono e o crioulo não esteja mais na cozinha. Ou então ele não torça mais pro Atlético”.

— Boa noite. Eu gostaria de saber se o crioulo ainda tra¬balha aqui. — pergunta Hermann.

— Trabalha. Mas o senhor...

— Eu vim mais pela chalchicha enorme.

— Pra homem é mais caro. São 20 real! — inflaciona a re¬cepcionista cafetina.

— Se a chalchicha for grande mesmo, até que vale a pena.

Quando Nusselt finalmente consegue estacionar seu Mille, dirige-se ao estabelecimento em que Hermann entrou e, ao ler os dizeres Relax na porta, tranqüiliza-se. Desta vez não seria difícil convencer o Hermann de que aquela não era sua salsicha. Hermann sai, após alguns minutos, pálido, triste e de¬cepcionado.

— Endereço errado. Chalchicha errada. E enorme... — re¬signa-se.

Hermann é mesmo burro. Eu avisei.

* * *

Procurando outro endereço para saborear uma boa salsi¬cha — desta vez no caderno certo do jornal, não na sessão erótica —, Hermann se depara com um anúncio estarrecedor: "Venha provar a melhor salsicha flambada da cidade. Aberto todos os dias, inclusive ho¬je". Hermann observa algo errado na frase. Bem perto da palavra "salsicha". Já sabe: é o "flambada". Não se flamba uma salsi¬cha, para Hermann. A salsi¬cha deve ser cozida, como prega a tradição.

Dirige-se ao local disposto a honrar a tradição. Ordena seu pedido ao garçom e aguarda impacientemente a chegada da salsicha como o réu aguarda o veredicto.

Grashof e Nusselt se atrapalham mais uma vez, agora por causa dos flanelinhas que insistem em exigir pagamento antecipado para cuidar dos carros do estacionamento. Os dois amigos estavam trabalhando juntos nessa noite, fugindo ao de costume. Entram gri¬tando desesperados no restaurante:

— Não flambem a salsicha de Hermann!!!

Era tarde. Encontraram os garçons, o gerente, o dono, o cozinheiro, todos mortos. Até os clientes agonizavam pelo chão. À ex¬ceção dos que conseguiram fugir e dos que não pediram salsicha, todos foram executados. Hermann se aproxi¬ma de Grashof e Nusselt, que, de joelhos, tentam uma última súplica.

— Nós não podíamos fazer nada, Hermann. O sistema dita as regras. A política, a sociedade, os costumes, até a culinária. Tudo é controlado pelo sistema. Não pudemos evitar que se flambassem as salsichas. Nós sentimos muito.

Foi em vão. Hermann engatilha a arma e executa os dois últimos amigos que lhe restava, justificando com sua máxima de in¬fância:

— Ninguém zomba da minha chalchicha e sobrevive...

Sem amigos, Hermann segue sua jornada solitária, como um justiceiro procurando vingança, em busca de sua salsicha cozi¬da. Tradicionalmente cozida.

E.T.: Hermann, Grashof, Nusselt e a salsicha flambada são fictícios. Os nomes foram alterados para resguardar a integri¬dade das pessoas e do quitute. De qualquer forma, haja o que houver, nunca flambem a salsicha de Hermann.

Namoro II: a descoberta do outro sexo



— Agora, vamos guardar os lapizinhos e os desenhos que vocês fizeram.

— Tia Lúcia, posso ir no banheiro?

— Pode ir ao banheiro, sim, Paulinho. Você sabe chegar lá sozinho?

— Sei, sim. É a segunda porta no final do corredor...

— Não, Paulinho, é a primeira. A segunda é o banheiro das meninas.

Paulinho nem ouviu. Seguiu determinado no caminho daquele que para ele era o banheiro dos meninos. Enquanto isso, lá dentro, Camila se enroscava com a calcinha. Depois de um rápido xixi, a menina não conseguia recompor sua veste de baixo. Com a naturalidade típica das crianças bem pequenas, Camila pretendia sair daquele jeito mesmo: passos curtos, roupa arrastando pelo chão, tropeço iminente. Quando chegasse na sala de aula, Tia Lúcia se encarregaria de erguer seus trapinhos e cobrir-lhe a genitália mirim.

Não deu tempo sequer de sair do banheiro antes que Paulinho, equivocado, irrompesse porta adentro com a pressa dos apertados. A vontade era tanta que abriu o zíper da calça tão logo passou pela porta e já ia preparando o bilauzinho para satisfazer aos chamados renais, quando se deparou com Camila, desprotegida e estarrecida pela chegada imprevista e triunfal do colega de classe. Atônitos e seminus, Paulinho e Camila se entreolharam. Não com a malícia de olhos adolescentes, mas com a ingenuidade curiosa das crianças.

— Paulinho, eu não disse que era a primeira porta e não a segunda... você não ouve nada mesmo, hein?! — grita a professora.

Tia Lúcia chegou atrasada para evitar o incidente mas a tempo de evitar que Paulinho urinasse no chão. Camila teve erguida sua calcinha e Paulinho pode fazer seu xixi, no banheiro adequado. Depois, voltaram os três para a sala de aula, onde Tia Lúcia daria continuidade às atividades usuais do pré-primário.

Na cabeça do Paulinho, aquela imagem insólita continuava a atordoá-lo. Camila era a única menina da classe com quem ele se relacionava (afinal, nessa idade meninos e meninas são antes de mais nada rivais e, às vezes, até se odeiam). Como poderia sua única amiga menina ter-lhe escondido o fato de não ter pinto? Logo ele, que era um garoto tão acessível, tão compreensivo?

Do outro lado, Camila nem sabia o que pensar. Aquela diferença que ficou exposta ali na sua frente era uma novidade forte demais para ser enfrentada por ela sozinha e só servira para confirmar uma antiga teoria: não se pode confiar nos meninos, eles são uns mentirosos. Por que nunca lhe disseram que a vagina dos meninos é saliente?

Em casa, Paulinho se aproxima da mãe e, sem mesmo dizer olá, entrega, implacável:

— Mãe, a Camila não tem pinto!

A mãe percebe no ato que alguma coisa estranha ocorreu na escola e, enquanto não pode verificar com a professora o ocorrido, pede ao filho que lhe esclareça o fato.

— Ela tava sem roupa e eu vi tudo. Quer dizer, não vi nada... quer dizer, vi que ela não tinha tudo... que o tudo dela era um nada... ou ao contrário...

O menino estava desnorteado. A mãe, com o talento materno natural, tenta acalmar o menino com as armas que tem.

— Paulinho. As meninas não tem pinto, meu filho. Isso é normal. Em vez do pinto, elas têm vagina.

Era uma boa resposta. Simples, rápida, objetiva, do modo que as crianças gostam. Teria sido perfeita se Paulinho não quisesse saber mais.

— Têm o quê?

— Va-gi-na. É que nem um pinto, só que é do avesso.

Estava indo bem até então. Depois daquela explicação, o pai saiu da sala, antes que sobrasse pra ele.

— Então, mãe, quer dizer que você também não tem pinto?

— Isso. Eu sou que nem a Camila, só que maior.

— E o Papai? É que nem eu, só que maior?

— É... mais ou menos, filho. Hoje em dia, nem tanto...

Na casa de Camila, situação semelhante. Só que maior. Lá, o pai resolveu que ele era o mais indicado para falar.

— Veja minha filha, na vida nada é exatamente como a gente gostaria que fosse e quando menos se espera o destino nos prega uma peça. A inconstância e a incerteza do acaso faz com que...

Felizmente, a mãe interrompeu o marido e explicou, com simplicidade, aquilo que Camila não entendera pela boca do pai. Os pais da Camila, bem como os do Paulinho, temiam que aquele primeiro contato com o outro sexo pudesse de alguma forma alterar a evolução natural das crianças. Mal sabiam que o incidente fazia parte dessa evolução.

Convencidos de que meninos e meninas têm mesmo diferenças, Paulinho e Camila voltaram a ser amigos e a convivência até melhorou. Ambos começavam a entender que meninos e meninas não são iguais por natureza e, por isso mesmo, não têm o mesmo comportamento diante dos fatos da vida.

Aos poucos, meninos e meninas aprendem a respeitar e aceitar essas diferenças. Mais tarde, começam a admirar e apreciar essas mesmas diferenças, procurando se aproximar cada vez mais da diferença do sexo oposto. Se possível, procuram tomar contato íntimo com a diferença do outro, utilizando-a de modo prazeroso, na melhor das intenções, é claro. Tentam, então, conhecer o maior número de diferenças possível, não se apegando a nenhuma diferença em particular. Esse fenômeno é o que se convencionou chamar de adolescência.

A essência do pensamento científico



Considerando o enorme sucesso que A essência do pensamento filosófico obteve entre leitores e críticos, resolvi ampliar o alcance dessas pílulas de sabedoria a diversas áreas do conhecimento humano e não restringi-lo apenas ao campo filosófico, conforme planejado no início. A seguir, encontram-se mastigadas a vida e a obra de alguns dos mais importantes cientistas de todos os tempos.

PITÁGORAS (560-480 aC)

Pitágoras de Samos, filósofo e matemático grego, fundou uma sociedade religiosa e filosófica em Croton, no sul da Itália, onde se praticavam o naturalismo vegetariano e a fé na reencarnação. Estranho, não? Se se acreditava tanto na duração da carne, por que só se podia comer vegetais?

Apesar de ser meio zureta, Pitágoras ficou famoso pelo teorema que leva seu nome, envolvendo relações matemáticas entre os lados do triângulo-retângulo, muito importante na astronomia e na geometria.

O sonho de Pitágoras era explicar todos os fenômenos naturais através da matemática. Como não foi possível realizar esse sonho, Pitágoras contentou-se em utilizar seu teorema para reprovar muitos alunos do primeiro grau em matemática.

COPÉRNICO (1473-1543)

O astrônomo polonês Nicolaus Copernicus revolucionou a ciência e a concepção do Universo de seu tempo, através de sua teoria Heliocêntrica. Não, isso não quer dizer que ele adorava um amigo seu, o Hélio. Nem que ele cheirava gás hélio para ficar falando com voz fina. Quer diser apenas que ele acreditava que o Sol era o centro do Universo e não a Terra, como queria a Igreja.

Na verdade, tempos depois, descobriu-se que o Sol também não é o centro do Universo, uma vez que existem um sem número de outras galáxias, estrelas e planetas.

De qualquer forma, perto da opinião da Igreja (que quase sempre é idiota), o palpite de Copérnico era bem mais próximo da realidade, razão pela qual ele acabou influenciando muitos outros cientistas, como Kepler, Galileu e Newton. Se bem que nessa época, os cientistas eram muito influenciáveis...

GALILEU (1564-1642)

Galileo Galilei, astrônomo e matemático italiano, construiu o primeiro telescópio para fins astronômicos em 1609, e fez importantes descobertas sobre os planetas do nosso sistema solar. É claro que aquele colégio que você conhece não foi fundado por ele, apesar de alguns dos professores atuais serem contemporâneos do cientista.

Galileu descobriu também que a aceleração de um corpo em queda nas proximidades da Terra não depende de sua massa. Quando digo massa não quero dizer que a lei só vale para macarrões, lasanhas e pizzas em queda livre. “Massa” é o mesmo que quantidade de matéria.

Galileu também acreditava no heliocentrismo de Copérnico (isto é, acreditava que a Terra girava em torno do Sol e não o contrário, como eu já disse) e tanta teimosia junta não poderia ser à toa. Só poderiam estar certos, em oposição ao que afirmava a Igreja. Isso mostra que a Igreja é mesmo burra.

Em 1633, Galileu foi preso e condenado por heresia. Isso mostra que apesar de burra a Igreja é poderosa...

NEWTON (1643-1727)

Sir Isaac Newton, uma das mais importantes figuras na história da ciência, contribuiu decisivamente na física, astronomia e matemática.

Correm boatos de que o físico estava andando num bosque e uma maçã caiu em sua cabeça. A primeira reação de Newton foi atirar a maçã de volta, com muita força, tentando acertar o brincalhão que o atingira. A maçã subiu ainda mais alto que o ponto de onde caíra e quando desceu acertou de novo a cabeça do cientista. Abalado pela pancada, Newton começou a cogitar a possibilidade de haver outra razão para a queda da fruta. Incrível como se pode converter burrice e agressividade em genialidade.

O resultado de seus estudos foi publicado num livro chamado Princípios (1687) — considerado por muitos o melhor trabalho da ciência moderna —, no qual o cientista explica as leis do movimento e da gravidade. Não, ele não era obstetra...

D’ALEMBERT (1717-1783)

Este era um grande físico e matemático francês que sempre é lembrado quando se fala em grandes pensadores por ter sido peça fundamental na implantação do Iluminismo. Não porque trabalhasse na companhia de eletricidade de Paris, afinal ela nem existia na época. Iluminismo é o nome que se deu ao movimento intelectual racionalista surgido no século XVIII na Europa.

D’Alembert foi editor de ciências da Enciclopédie de Diderot (lembra do “Didi do gogó”?), obra mais importante do chamado “século das luzes”. Acredito que seja desnecessário comentar que não existe lamparina que permaneça acesa por 100 anos...

Outra importante figura do Iluminismo foi o escritor Voltaire. Não, Voltaire não era português nem fazia dupla com seu irmão Ire. Essa piadinha medíocre não faz sentido nenhum depois de saber que o nome do infeliz, que também era francês, pronuncia-se voltér e não como se escreve.

EINSTEIN (1879-1955)

Albert Einstein, nascido na Alemanha, foi um dos maiores cientistas da história por suas contribuições na física contemporânea.

Desenvolveu a teoria da Relatividade. Isso não quer dizer que ele respondia “depende” para todas as perguntas que lhe faziam, muito menos que ele tenha sido o idealizador do PSDB.

Esta teoria mostra que a física newtoniana não vale para velocidades próximas à da luz, nem para sistemas moleculares.

Em 1940, naturalizou-se como cidadão dos Estados Unidos da América. Pode-se concluir daí que até os gênios se deixam levar pelo dinheiro às vezes.

Era radicalmente contra a guerra. Tanto que, para acabar de uma vez com todas com a terrível atividade bélica, ajudou com idéias a desenvolver a bomba atômica, que mandaria pelos ares todos os tanques, canhões, barricadas e demais aparatos de guerra. Não reclame: a intenção é o que importa.

Dizem que era péssimo aluno na escola, sobretudo em física. Por isso, de agora em diante, pense melhor antes de brigar com seus filhos quando tirarem notas baixas na escola: você pode estar dando bronca em um gênio! Ou não...

A beldade e o abestalhado



Juliana não mandava recados:

— É a sua, seu cafajeste!

Nascida e criada no interior de São Paulo, Juliana era filha de um fazendeiro milionário da cidade de Bauru e tinha um tem¬peramento forte. Linda, alta, cabelos e olhos claros, pele macia. O corpo era um convite à perdição. Na roça a piãozada delirava:

— Lá vai a patroazinha... Mai cumo é boa a desgramenta!

Seu pai desde cedo vigiava a menina, alvo da cobiça mas¬culina da redondeza. Na sua frente, os empregados fingiam que não a viam enquanto o patrão fazia-se de desentendido. O máximo que se comentava era a altura da jovem:

— Que espichada deu a Juliana, não, seu Ferreira?

E o pai, orgulhoso, dizia:

— Puxou o lado dos Ferreira.

Na família do pai os homens eram altos e atléticos. As mulheres, formosas e belas. Juliana não economizara na genética e pegara logo todas as qualidades dos primogenitores.

A vida era boa na tranqüila cidadezinha mas era pouco para aquele monumento de mulher.

— Pai, quero estudar na capital. Quero ser atriz!

— E eu quero morrer de desgosto se você abandonar nóis!

— Mas eu não vou abandonar vocês! Só vou estudar e tra¬balhar em São Paulo. O pai não quer ver a filha famosa, apare¬cendo na TV?

O pai não queria. Preferia vê-la na roça, sob sua constante observação, onde o risco da menina "arranjar um home" era menor. Pelo menos na cabeça do Ferreira, pra quem a adolescente era ainda donzela.

— Deixa ela ir, bem. Segurar é pior! — advertia a mãe, com sensatez. E foi a mãe que instruiu a filha, orientando e pre¬venindo sobre os perigos que lhe aguardariam na cidade.

— Vai, filha. Se precisar nóis tamo sempre aqui!

Juliana sabia se virar. Mas nem era preciso saber muita coisa com a estrutura que seus pais lhe montaram na cidade. Morando num flat com telefone, tendo motorista e muitos zeros na conta bancária, as coisas são mais simples. De qualquer modo, não deixava barato quando mexiam com ela na rua:

— Aí, gostosa, que saúde, hein?

— É a sua mãe, seu tarado!

Na escola de artes conheceu Fúvio, um rapaz magro e es¬quisito, por quem se apaixonou.

Fúvio havia estudado num dos melhores colégios da capi¬tal, em Higienópolis, e tinha a vida urbana impregnada na pele, cir¬culando pelas veias. No fim da puberdade, decidiu que queria ser ator. Sonhava ficar rico, famoso, assediado, largar tudo e ir morar no interior, numa casa rústica e ensolarada, nessa ordem. No mais, era um perfeito idiota.

Nos primeiros anos do ginásio, Fúvio não se dava bem com os demais garotos, sobretudo porque não jogava bem fute¬bol. Existe uma fase, na infância, em que jogar bola corresponde ao volume da juba do leão ou ao tamanho do chifre do alce. Fúvio era um leão careca, um alce sem corno. Quando os meninos iam para a quadra e escolhiam os times (Fúvio era sempre o último a ser escolhido), o pequeno imbecil pegava seu iogurte na mochila, provando aos de¬mais seu completo desape¬go ao esporte bretão e sua total ignorância das regras e da ética esportiva.

— Ou você joga, ou toma o iogurte, babaca! — agrediam os meninos do seu time. Já os oponentes o defendiam:

— Deixa o Fúvio. Vocês estão com um a mais mesmo...

A adolescência passou em branco. Sem namoradas, com poucos amigos, Fúvio tentava quase sempre agir como se fosse um rapaz normal. Resolveu fazer teatro para ver se melhorava sua vida social. No curso de artes dramáticas conheceu a inte¬riorana deslum¬brante.

— Me chamo Fúvio. E você?

— Juliana. Que nome diferente!

— Não acho. Juliana é bem comum por aqui.

— Estou falando do seu nome...Fúvio.

— Ah! Foi idéia do meu pai. Ele também é Fúvio e não queria ser o único, por isso botou o nome em mim.

— Minha mãe se chama Cremilda. Que sorte a minha já ter uma tia com esse nome. Senão...

— Seria um paradoxo: uma garota tão linda chamada Cre¬milda...

— Imagina...

Nem parecia o mesmo. Quando estava com Juliana, Fúvio era mais alegre, mais falante, uma pessoa extrovertida.

Não demorou muito para que começassem a namorar. Fúvio mudou-se para o flat de Juliana e não se desgrudavam nem um minuto. Os meses passavam e o amor dos dois se intensi¬ficava. Queriam-se casar, ter filhos, construir uma casa jun¬tos, brigar com os parentes, dizer que se amam. Comprar um dobberman, arranjar encrenca com os vizinhos, xingar o síndico, magoar-se por bo¬bagens, brigar por falta de diálogo. Ficar separados por uns tempos, retomar o casamento, partir do zero com maior intensidade. A história dos dois poderia ser vendida para o cinema e daria o filme mais romântico dos últi¬mos tempos. Poderia.

Mas o pai de Juliana não gosta de cinema, nem é um homem romântico. Descobriu o caso da filha e a obrigou a voltar para a fazenda e largar seu sonho de ser atriz, expulsando Fúvio de sua vida sob férrea ameaça de morte. O medo de Fúvio foi maior que seu amor e o casal se desfez, sem o mínimo de poesia. Depois do incidente, a vida corre como queria o pai.

— Que espichada deu a Juliana, não, seu Ferreira?

— É. Ela puxou o lado dos Ferreira. — respondia o pai auto¬ritário, sem o mesmo orgulho de antes. — Ela puxou os Ferreira...

Tributo ao Millôr fabuloso I: os três sábios e o mendigo



Um mendigo do centro da poluída cidade de São Paulo (1) vivia, como todo mendigo, sua vida miserável, dividindo seu tempo entre o ócio e a falta do que fazer (2). Passava na porta dos restaurantes e, antes de ser afastado pelo porteiro, apreciava os lindos e apetitosos pratos que não podia provar. Senão, ficava na frente dos mercados observando as pessoas saindo com as compras que só seriam suas em seus sonhos (3). A descrença e o conformismo eram tamanhos que o mendigo nem mesmo questionava mais sua condição de miséria absoluta.

Um dia, quando amanhecia e os primeiros raios do sol permitiam ver as cores da cidade, o mendigo foi abordado pela insólita presença de três ricos sábios chineses (4). Yang, o mais jovem, iniciou a conversação: "Honolálio senhor mendigo, estamos aqui pala plopor ao senhor uma opoltunidade única em sua vida (5), que dependelá, evidentemente, da sua aceitação". O mendigo não sabia do que se tratava, mas como nada podia ser pior que sua situação, concordou prontamente: "Manda!". Sung, o do meio, continuou: "Se o senhor conseguir deciflar a chalada que nós vamos plopor, o senhor podelá desflutar uma vida de liqueza e plazeles, à qual nós estamos habituados e da qual nós abdicaremos em seu favor; caso contlálio, o senhor selá condenado a viver na mais absoluta misélia pala o lesto de sua vida e nós continualemos nababos". O mendigo, não tendo nada a perder, aceitou: "Prossiga!". Ling, o mais velho e, portanto, o mais sábio (6), enunciou a charada: "Senhor mendigo, quantas estlelas existem no céu?". Os três sábios sorriam disfarçadamente pela certeza de que seria impossível para um mendigo saber a resposta a uma questão não decifrada pela ciência. Com a tranqüilidade típica de quem já chegou no fundo do poço (e ainda assim descobriu um calabouço), o mendigo respondeu com segurança: "Há tantas estrelas no céu quantas são as gotas d'água no oceano!" (7). A resposta caiu sobre a cabeça dos sábios como uma bola de boliche. Na dúvida — como saber se está certo ou não? A imponderabilidade existe nos dois casos! —, os sábios foram obrigados a cumprir a parte desfavorável do acordo, trocando de lugar com o mendigo, que agora virara milionário.

No dia seguinte, podia-se ver o ex-proleta, agora rico e sábio, almoçando nos melhores restaurantes, fazendo compras e entoando provérbios. Na porta, os três mendigos olhavam o atual sábio com profunda tristeza (a lembrança da riqueza ainda latejava em suas memórias), porque aqueles, diferentemente deste, já tinham conhecido o sabor da fartura que, agora, se lhes tornara inexoravelmente inacessível (8).

MORAL: Se não sabe a resposta a uma questão, cale a boca!

SUBMORAL: De sábio e rico todo mendigo tem um tico.

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Notas:

(1) Sei que é difícil imaginar um mendigo no centro de São Paulo mas, vá lá, façamos uma forcinha!

(2) Método moderno de se especializar numa mesma atividade enquanto diz exercer duas diferentes.

(3) Um mendigo, que mal dorme, é capaz de sonhar?

(4) Não sei o que três sábios chineses ricos estariam fazendo em Sampa...mas isso é uma fábula afinal, não é? Então, qual é o problema? Use a imaginação! Aceite.

(5) Historicamente, todo chinês é ridicularizado quando tenta falar português, passando por Cebolinha. Até que ponto tem fundamento(eles não têm alguns dos nossos fonemas mesmo)? A partir de quando vira perseguição de brasileiro, coisa de piada? Não sei. Isto é uma fábula.

(6) Nas culturas orientais, idade e sabedoria se confundem, são conceitos próximos, cujos limites se entrelaçam. Isso é sério.

(7) Para um mendigo, que obviamente não teve educação, até que a resposta foi muito bem formulada.

(8) Uau! Que língua a nossa!



Autocrítica



Dia desses relia um livro do Ignácio de Loyola Brandão, A rua de nomes no ar, excelente compilação de crônicas do autor. Num dos textos, de caráter autobiográfico, o autor descrevia uma tarde de um dia útil em que ele, livre de imposições de horário ou patrões, voltava a pé para casa, quando começou a chover. Inicialmente, conta o autor, pensou em correr. Depois, diante da inexistência de compromisso iminente, resolveu andar e aproveitar a chuva. Uma daquelas emoções que só as crianças podem sentir (os adultos têm responsabilidades e não têm tempo para viver presentes meteorológicos). Contava então a boa sensação que teve mergulhando os pés na enxurrada formada na sarjeta da Haddock Lobo, em plena tarde de um dia de trabalho, e a felicidade de ser reconhecido (até na chuva) por um motorista que lhe ofereceu carona, mas recusou-se a juntar-se a ele por ter compromissos para os quais deveria estar seco. Ainda mais prazerosa a sensação por ser aquele um luxo exclusivo das pessoas que tiveram a coragem de um dia dizer não a tudo aquilo que é estabelecido.

Essa expressão ("tudo aquilo que é estabelecido") ficou martelando na minha cabeça. Já repararam como nós somos condicionados? Como temos dentro de nós incutidas as regras do jogo, as normas de conduta, de comportamento, o que e como fazer, o proibido, o permitido, o certo e o errado...

É como se fossemos robôs programados para executar as tarefas do cotidiano seguindo rotinas pré-concebidas à luz de um código ético e moral extremamente rigoroso. Aceitável, até certo ponto, se considerarmos que a convivência em sociedade requer o estabelecimento (e o cumprimento) de um padrão de comportamento básico. Condenável, muitas vezes, sempre que esse rigor é exagerado. Para não dizer estúpido.

Refiro-me a situações ridículas e desnecessárias às quais nós mesmos nos submetemos. Já fizeram entrevista para emprego ou estágio? Então sabem exatamente do que estou falando.

O candidato a um determinado cargo não deve ter vícios, de qualquer espécie, a menos que isso favoreça seu desempenho ou seja também um vício do patrão. Deve ter boa aparência (???). Isto significa não fugir em nada aos padrões característicos de sua futura profissão.

O executivo precisa de óculos, gel sobre o cabelo necessariamente curto, vestuário conservador. Nada de jeans ou camisetas. Nada que permita o movimento respiratório normal. Mesmo que não lide diretamente com o público, ficando sempre na frente do micro, atrás de uma mesa, deve permanecer em seus trajes sociais, incomodado ou não. Afinal, conforto não aumenta a produtividade. Ou aumenta?

Talvez o método seja correto. Talvez a permissividade acabe gerando excesso de liberdade, o que afrouxaria o ritmo de trabalho. Pode ser que quando o ambiente de trabalho comece a lembrar nossa própria casa a concentração evapore. Ou se a camiseta da nossa colega nos permita ver seus seios entumecidos, nada mais funcione além dos hormônios (isso parece ser verdade!).

No entanto, essa dispersão ocorreria exatamente por estarmos acostumados a não ver os seios de nossas colegas durante o período de trabalho. Seios e coxas fazem parte da vida social, e não da profissional, simplesmente porque sempre foi assim. A camiseta e o jeans são imediatamente associados ao lazer porque nunca fizeram parte do escritório, nunca entraram na empresa. Já tiveram que levar algum tipo de trabalho para fazer em casa? Precisaram vestir terno para fazê-lo? E não ficou pronto ali mesmo entre as revistas e os jornais da sala, com a TV ligada para dar sensação de ganho de tempo, com a família passando por você, trocando comentários, comendo porcarias e bebendo refrigerante? A bermuda não atrapalhou em nada. Nem atrapalharia se o seu cabelo estivesse pelo meio das costas (só atrapalharia se estivesse solto, cobrindo-lhe o rosto). É bem verdade que a sua colega gostosa não estava lá de camiseta, mas...

Outras profissões são mais permissivas. Parece haver maior flexibilidade, maior aceitação das peculiaridades dos indivíduos. Mas certamente, em algum ponto, apresentam desvantagens, idiotices impostas pelo costume e mantidas até o basta reacionário derrubar a tradição. Até lá, temos de nos submeter ao que é estabelecido se quisermos tomar parte no jogo.

Enquanto sonhar ainda é permitido até às pessoas sérias, imagino como seria bom poder fazer como diz aquele comercial de cigarro: levantar de manhã e deitar à noite, tendo feito, entre um e outro, apenas o que dê prazer.

Enfim, não há nada melhor que não ter que fazer nada. Ou pelo menos, não ser obrigado a fazer nada. Poder sair para andar e, se quiser, entregar-se sem pressa aos apelos meteorológicos.

Namoro III: o amor platônico



Quando soava o sinal do recreio, o pátio apinhava de gente. Meninos e meninas de todas as idades dirigiam-se à cantina e arredores, consolidando o que se poderia chamar de um point intra-escolar. Lá, os jovens se conheciam, trocavam “chavecos”, telefones e farpas, comportavam-se como um bando de adolescentes sob vigília sigilosa de professores e coordenadores do colégio.

Embora já tivesse 16 anos, Sandra nunca tivera um namorado. Não porque fosse muito “baranga” ou demasiadamente chata, mas porque sua timidez era ainda maior que o desejo de desencalhar. Na verdade, faltava-lhe autoconfiança e auto-estima.

Sempre que aparecia um garoto interessante, as outras meninas, mais espertas e desenvoltas, lançavam mão de suas infalíveis técnicas de sedução e, alguma delas, ganhava o menino. Sandra nem mexia um dedo, tamanha sua certeza de que o cara jamais se apaixonaria por ela. Assim, prostrava-se à concorrência sem sequer falar com o garoto.

O tempo passava, as acnes vinham e iam, os garotos passavam por Sandra e ela continuava na toca, temerosa pelo desconhecido. Cega pela timidez e pela falta de coragem, não percebia que muito pior que a decepção por receber um não é a frustração de jamais ter experimentado essa decepção.

Um dia chegou um garoto recém transferido de outro colégio, que mudou toda a situação. Ricardo era exatamente o que Sandra esperava de um homem. Até aí, sem novidades, pois muitos rapazes já lhe haviam despertado a mesma sensação. Só que desta vez, a menina decidiu lutar por ele.

Sandra não era gorda, mas tinha sobras desnecessárias. Por isso mesmo, começou dieta rigorosíssima e passou a freqüentar todos os dias uma academia próxima à sua casa. Em pouco tempo, entrou numa forma invejável, até mesmo para as mais voluptuosas garotas de sua classe. Reformou seu guarda-roupa, abandonando de vez o estilo boa menina. Agora, não usava um vestido que não acentuasse sua cintura fina frente ao quadril largo e teso. Nada de sutiã ou camisa sem decote, afinal, seus tenros e transbordantes seios deveriam ser exibidos. As coxas rijas e roliças também estavam à mostra, para quem quisesse ver. E o cabelo, antes confinado, enrolado como uma corda, agora balançava de um lado para o outro, roçando-lhe as costas na altura das nádegas, movimentado pelo harmonioso rebolado que Sandra desenvolvera. Abandonou os óculos, substituindo-os por lentes de contato que permitiam ver os lindos olhos que tinha.

Tamanha transformação não era milagre. Nem era o enredo de um filme da Sessão da Tarde, no qual a jovem bruaca encalhada, de óculos e aparelho nos dentes, apaixonada pelo garanhão da turma, revela ser no final a Cindy Crawford, descobrindo que o garanhão é um grande babaca e que seu melhor amigo, o Kevin Costner, é no fundo o homem de sua vida. A menina não havia sofrido alterações físicas tão drásticas. Na verdade, só perdera uns poucos quilos de gordura, mas ganhara muitos quilos de confiança. Seus seios não eram tão grandes, mas mesmo assim o decote chamava a atenção. Nem a bunda tão certa, nem a cintura tão fina. No entanto, a mudança de comportamento e o acréscimo de auto-estima fizeram-lhe outra mulher.

Os rapazes, entre si, teciam comentários e fantasias com Sandra, a “ex-bruaca”. Muitos queriam sair com ela, mas seu grande sonho era Ricardo, razão de sua transformação. Aliás, Ricardo manifestou admiração e contentamento diante da atitude de Sandra, mas nunca a convidou para sair.

Sandra resolveu que o rapaz seria dela de qualquer jeito: se a metamorfose não foi suficiente para fazer Ricardo procurá-la, ela mesma iria falar com ele, declarar-lhe sua paixão, vencendo a última grande barreira para sua felicidade, a sua timidez.

Produziu-se como uma princesa para uma festa de uma colega de classe. Decidida, pôs na cabeça que não sairia daquela casa sem o namorado pretendido. Aquela seria sua grande noite.

Ao chegar, pode-se dizer que Sandra causou uma revolução: os homens olhavam bestificados aquela mulher deslumbrante e atraente, sem sequer disfarçar (na verdade, os homens não conseguem disfarçar nessas situações); as mulheres roeram-se de inveja, iradas com a poderosa concorrente (mas conseguiam disfarçar perfeitamente o ódio, como toda mulher).

Sandra gostava daquela sensação. Sentia-se desejada e isso lhe aumentava a convicção de que era a hora certa de atacar Ricardo. Perguntou pelo amado e seguiu à sua procura. Ele estava no andar de cima do sobrado e já estava lá havia algum tempo. Subiu, então, remoendo uma ansiedade angustiante, temendo ter chegado tarde demais e encontrá-lo nos braços de outra mulher. Mesmo assim não desistiria. Ricardo era o homem de sua vida e haveria de ser dela, um dia.

No corredor, ouviu gemidos de prazer vindo do quarto no final do corredor. Não lhe restava dúvida: eram de Ricardo, em êxtase sexual.

Sandra estava obcecada. Tanto sacrifício e tanto esforço empregados na conquista daquele sujeito e ele não pensara duas vezes para se entregar a outra mulher. Em vez de ir embora ou atacar outro garoto, Sandra resolveu que nada do que fez valera a pena. Decidiu que deveria voltar a ser como era: sem graça, inerte, insossa. Que todo aquele sacrifício não valera a pena, nem jamais valeria. Mas que antes disso, diria umas poucas e boas para Ricardo e dirigiu-se até o quarto. Abriu a porta de supetão, sem bater ou anunciar, flagrando os dois amantes em pleno clímax. Essa foi sua salvação.

Nos dias seguintes, Sandra botou a cabeça no lugar e optou por manter a forma e a volúpia adquiridas. Arrumou namorados, às vezes mais de um, e foi muito feliz desde aquele dia.

Fico pensando se Sandra não tivesse decidido invadir o quarto e tomar satisfações com Ricardo, mesmo sem ter direito algum de interferir em sua vida amorosa. Hoje, ao invés de feliz e disputada, seria rancorosa e rejeitada, em função de um tipo de amor que ela não tinha armas para derrotar. De alguma forma, a imagem de Ricardo na cama com outro homem, livrou a adolescente do sentimento de culpa e impotência diante do insucesso daquela conquista, e serviu para lhe guiar corretamente na vida.

Eu avisei que esta história não era para a Sessão da Tarde...

A essência do pensamento psicológico



O ditado popular afirma que de médico e louco, todo mundo tem um pouco. Embora se proponha a servir para todas as pessoas, esse ditado se encaixa como uma luva para psicólogos e psiquiatras, que têm muito das duas coisas.

Não se pode negar, no entanto, que a participação desses profissionais na sociedade trouxe contribuições importantíssimas no desenvolvimento e na compreensão do comportamento humano. Ou não? De qualquer forma, aqui vão alguns expoentes do pensamento psicológico...

FREUD (1856-1939)

Nascido em 1856 na Checoslováquia, Sigmund Freud mudou-se ainda criança com sua família para a Alemanha e depois Viena, onde passou a maior parte de sua vida e veio a fundar a psicanálise, termo usado para descrever suas teorias sobre personalidade e seu método de tratamento de doenças mentais.

Seu pai era um comerciante judeu e sua mãe era dona-de-casa. Eis aí a origem de sua atividade: ganhar dinheiro dos clientes botando a culpa na mãe deles.

Além de revolucionar a psiquiatria do século XX, provou, de uma vez por todas, que a diferença entre o analista e o paciente — além do fato de que este último é quem paga, enquanto o primeiro é quem recebe — é quase nenhuma, exceto pela posição em relação ao divã.

JUNG (1875-1961)

Carl Gustav Jung foi um psicólogo suíço, apesar do nome parecer de Chinês.
Para desenvolver a psicologia analítica, trabalhou durante certo tempo junto ao Freud, o que certamente agravou sua demência.

Foi pioneiro na exploração dos mitos, dos sonhos e da psicologia da religião para tentar compreender a “psique” humana, estabelecendo ligações entre símbolos e psicologia.

O ponto de partida das teorias jungianas é sua própria vida. Por muitos anos, Jung acreditou que possuía duas personalidades diferentes: uma pública e exterior, envolvida com a vida familiar, outra secreta e interior, especialmente próxima de Deus. A interação dessas duas personalidades guiou Jung na vida e no desenvolvimento de suas pesquisas.

Ou seja, o cara assumia claramente sua esquizofrenia e achava que tinha moral para orientar a loucura dos outros. Esses psicólogos...

PIAGET (1896-1980)

Jean Piaget, outro psicólogo suíço, foi pioneiro no estudo do desenvolvimento do pensamento nas crianças. Aliás, os suíços são grandes fabricantes de queijo, relógio e psiquiatras. Talvez por isso eles não passem fome, tenham avanço tecnológico e não cometam loucuras como os brasileiros.

De acordo com as pesquisas de Piaget, a criança em crescimento está constantemente refinando suas habilidades natas através do processo de tentativa e erro.

Através desse método — que muitas pessoas usam até o fim da vida — as experiências físicas são convertidas em padrões simbólicos de complexidade crescente. Seja lá o que isso signifique, ajudou muita gente a curar os problemas mentais de seus filhos.

Mau humor



O homem de terno bem cortado entra no ônibus que vai do bairro para o centro. Ninguém em pé, mas só resta um lugar vago. Ao lado de uma senhora carrancuda.

— Bom dia, senhora. Posso?

— Pode o quê?

— Sentar. O lugar está vago, não está?

— Não exatamente.

— Tem gente aqui?

— Claro que não. O senhor está vendo alguém aqui? Se não está vendo é porque não tem.

— Se não tem ninguém, o lugar está vago. Certo?

— Não exatamente.

— Desculpe, mas eu não entendi.

— Não entendeu o quê?

— Não entendi o que a senhora tenta dizer com "Não exatamente".

— Suponha que o senhor me perguntasse: "Dois e dois são quatro?". Eu responderia: "Exatamente". Agora se a pergunta fosse: "E um vírgula noventa e nove e um vírgula noventa e nove, são quatro?". Então minha resposta seria: "Não exatamente".

— Entendi. A senhora quer dizer, então, que o lugar não está totalmente vazio.

— Nem completamente ocupado.

— Claro. Se estivesse completamente ocupado, a senhora diria: "Exatamente. O lugar está plenamente ocupado". Não é isso?

— Não necessariamente.

— O que quer dizer agora com: "Não necessariamente"?

— Quero dizer que eu poderia ter dito: "Não exatamente. O lugar não está amplamente vazio".

— Tá bem, tá bem. A senhora poderia me fornecer algumas informações a respeito do lugar ao seu lado?

— Depende.

— O quê que depende?

— Se eu tiver o conhecimento da informação que o senhor deseja eu posso até responder. Caso contrário, sou obrigada a dizer...

— ... "não exatamente", eu suponho.

— Precisamente.

— Bem, eu quero saber duas coisas: primeira, qual o percentual de desocupação desse lugar ao lado da senhora e, segunda, qual o índice mínimo para que outra pessoa possa se ocupar de um lugar parcialmente vazio?!

— Depende.

— Depende do quê, minha senhora!!!

— Depende do lugar propriamente em questão.

— Ah! Depende do lugar em questão.

— Propriamente.

— Certo. Vamos supor, apenas por hipótese, que houvesse um lugar aparentemente desocupado em sua plenitude, bem ao lado da senhora. Fica, assim, determinado o lugar propriamente dito. Suponhamos, ainda, que eu quisesse sentar nesse suposto lugar, chegasse até a senhora e pedisse permissão para tal, ao que a senhora responderia: "Não exatamente". Qual deveria, então, ser a minha atitude? Sentar-me-ia ou não?

— Não posso responder assim...

— Assim como?

— Assim tão rapidamente.

— Minha senhora! A senhora quer fazer o favor de me dizer, de uma vez por todas, sem enrolar, de maneira clara, simples e direta: afinal, sento ou não sento?

— Está bem, está bem. Se o senhor insiste. Pode se sentar. Mas não definitivamente...

Simpósio cósmico




A sala de reuniões vazia aguardava a chegada de ilustres celebridades (ou deveria dizer entidades?) nacionais para um importante encontro. Ali estariam juntos os maiores nomes da nossa cultura espiritual: bruxos, curandeiros, videntes, médiuns, progenitores-de-santo (refiro-me a pais e mães-de-santo), quiromantes, esotéricos, especialistas em anjos, cabalistas, entre outros, além da presença inevitável dos gnomos, duendes, leprechaus, anjos, fantasmas e entidades etéreas em geral.

A idéia era ótima: promover um congraçamento telúrico entre os maiores expoentes do misticismo e da religião multi-étnica brasileira. Afinal, um país de diversas influências culturais, resultado de uma fusão complexa de várias raças e credos, só poderia ter um caldo religioso tão diverso e encorpado.

Os convidados já estavam chegando, incorporados ou à paisana, sozinhos ou em bandos, com seus trajes típicos, adereços de toda sorte. Alguns penetras também já se encontravam ali: é difícil barrar a entrada de almas penadas sem ingresso.

A muitos quilômetros do ginásio, um carro quebrado. O capô aberto, dois homens olhando para o motor. Um deles, o dono do automóvel, queixava-se:

— Depois falam que carro importado é que é bom. Esse aqui é zero, alemão e parou. Você viu quantos fusquinhas velhos passaram por nós?

A irritação não era sem fundamento. Tratava-se de Saulo Botelho, um dos mais famosos bruxos da cidade, vendedor de milhares de livros, um escritor de best-sellers. Tinha acabado de desobstruir um enorme engarrafamento na marginal Tietê com o intuito de não aumentar seu atraso, que já era enorme, e de repente o carro pára. Que diabo!

— É mas a culpa não é dos alemães. O Fusca é alemão!

Brilhante observação. Pai Dudu era mesmo genial. E o fusca era a prova irrefutável de que o homem evoluiu demais. Tanto que tiraram o oblongo e desconfortável de linha (contrariando o desejo daquele presidente topetudo). Pai Dudu, sempre cheio de idéias incríveis, sugeriu:

— Não é o carburador?

— Não. Esse carro nem tem carburador. Tem injeção.

— Então vai ver que é isso: a agulha quebrou. Vamos até uma farmácia comprar outra seringa...

— Não, Dudu, menos. Tô falando de injeção eletrônica. Quer dizer que não tem carburador: o computador é que faz a mistura entre o ar a o combustível. Entendeu?

— Áfe...

De dentro do carro vinha uma voz irritada:

— Eu não disse? Eu avisei...

Mãe Dinorá estava uma arara. Tão possessa que nem se dera ao trabalho de sair do carro. Até porque sua especialidade é previsões, não mecânica automobilística. Ela havia previsto que alguma coisa estranha envolvendo pessoas e máquinas iria acontecer naquele ano. Dito e feito.

— Eu avisei...

— Já ouvi, Mãe Dinorá. Já ouvi. Mas a senhora precisa ser mais específica em suas previsões. Como é que eu ia saber que isso ia acontecer! Inferno!

— Bate na boca, Saulo, que Exu vem atrás! Dá três voltas pulando no pé esquerdo, com os braços cruzados, cantando uma oração pra Oxum!

— Pra quê, Dudu?

— Pra espantar a energia negativa. Você falou o nome do Cão. Isso atrai maus fluidos.

— Não se preocupe comigo, não, que pra evitar mal olhado eu faço sempre o Exercício Para Espantar Olho Gordo, que eu mesmo desenvolvi.

— Que diabo é isso?

— Você fecha os olhos e mentaliza uma Kombi rosa pegando fogo. Depois levanta a unha do polegar da mão esquerda e joga uma mistura de sal, vinagre e limão. Se não tiver limão serve álcool mesmo. Não esquece de sentar nu sobre cacos de vidro espalhados em um formigueiro, nem de passar pólvora na virilha e tocar fogo. É batata! Nunca falha! Não há quebranto que resista ao exercício...

— Mas não dói muito?

— Não sei. Eu não faço isso em mim, faço nos outros. Sou bruxo, não burro.

— E pra quê serve a Kombi rosa pegando fogo?

— Isso é só ilustrativo. Ajuda a vender mais livros.

Mãe Dinorá desce do carro.

— Como é, já descobriram o problema?

— Eu sou bruxo, não adivinho. O Pai Dudu aqui é que devia descobrir o problema.

— Eu? Mas eu deixei meus búzios na mala. Não dá pra prever nada assim. Já a Mãe Dinorá bem que podia pegar as cartas...

— Xiiii! Agora que eu vi: esqueci meus óculos. Sem eles eu não posso tirar as cartas. Mas eu avisei...

— Já sabemos! — respondem em uníssono.

— Não falta gasolina?

— Isso é uma visão ou um palpite, Dinorá?

— É um chute.

— Não.

— Certeza, Saulo?

— Claro. Esse carro é a álcool.

— Eu vou voltar pro carro. Agora vocês que resolvam o problema. Eu avisei...

— Bom, pelo menos não está com cara de chuva.

Ficaram os três esotéricos dentro do carro, esperando a torrente de granizo acabar. Quatro horas depois, conseguem chegar ao ginásio. Estava vazio. Só restavam as sobras. Galinhas, farofas, cinzas de incenso, velas derretidas, panfletos zen-budistas, ectoplasma espalhado por todo lado. A festa deve ter sido boa. Diante daquilo, era impossível que não surgisse revolta entre os três atrasados.

— Que belo vidente você é, Pai Dudu! Nem percebeu que o carro estava sem uma gota sequer de combustível! Diabos!

— E você? Um bruxo que não sabe transformar água em álcool etílico! Pior que isso só a Mãe Dinorá, que não conseguiu prever uma coisa tão óbvia.

— Eu falei: olha a gasolina! Olha a gasolina!

— Pois é! Mas não falou: olha o álcool! Olha o álcool!

— Eu estava sem os óculos. As informações ficam nebulosas...

— Meus búzios estavam na mala...

— E minha varinha? Vocês me viram de varinha? Um bruxo sem varinha não é nada...

Desistiram de brigar. Era inútil. Viraram as costas para as provas concretas do sucesso do encontro. Teriam que ir embora sem a menor participação. Sem uma foto sequer dos irmãos Vapporeto. Levaram um pouco de ectoplasma num copo plástico, de recordação. No caminho de volta o silêncio reinava absoluto dentro do carro. Só se ouvia uma frase insistente, de tempos em tempos:

— Eu avisei. Eu avisei...

Namoro IV: o fora



Na danceteria mais badalada da cidade, naquele verão, Henrique, o conquistador, vai à luta. Há duas semanas não ficava com nenhuma garota e aquele longo recesso estava deixando o rapaz agoniado.

— E aí, gata, tudo bem?

A moça estranhou de cara o uso da expressão “gata”, em desuso desde que sua mãe começou o noivado com seu pai, mas mesmo assim respondeu:

— Tudo bem.

— Pra mim também tá tudo bem. Você vem sempre aqui?

— Nem sempre.

— Eu também não. Só de vez em quando.

— Legal.

— É. Eu também acho legal.

A estratégia de Henrique era simples: apostava na teoria de que para se começar um relacionamento, mesmo que passageiro, deve-se apostar nos pontos em comum entre você e a pretendente. Por isso, concordava com tudo que a garota dizia. A idéia era boa, mas na prática...

— Você gosta de dançar?

— Não. Eu venho nas danceterias por causa da batata-frita e do empurra-empurra. O que você acha? É claro que eu gosto de dançar!

— Então porque você não está dançando?

— Porque tem um cara chato pendurado no meu pé!

Desista, Henrique. Essa já era. Melhor procurar outra e não fazer perguntas que permitam respostas tão óbvias. O negócio é mostrar que você é um cara inteligente. Faça a garota pensar.

— Se um carro parte do repouso com uma aceleração constante de 5m/s2 e, depois de percorridos 40m adquire velocidade constante, quanto tempo levará para perfazer um percurso total de 100m medidos a partir do início do movimento? Qual será sua velocidade final?

— Você é louco? Que pergunta é essa?

— Questão 6 da FUVEST. É fácil, basta pensar um pouco. Quer que repita?

Não, Henrique, não será necessário: a garota já desapareceu. Mostrar que é inteligente não é mostrar que é bitolado. Onde está sua criatividade, rapaz? Mostre que é culto.

— Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano, Netuno e Plutão.

— O quê? É comigo?

— São os planetas do nosso sistema solar, na ordem de maior proximidade do Sol: Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano, Netuno e Plutão.

— Dá licença.

Seja criativo mas não tanto, Henrique. Você está sendo técnico demais. Erudição assusta as pessoas, sobretudo no primeiro contato. Procure se fazer casual, não force nenhum tipo de situação. Se preciso, apenas olhe e deixe que a garota tome a iniciativa. Algumas garotas gostam do tipo difícil. Vista aquele casaco com seu nome escrito nas costas e dê uma de distraído.

— Gostei dessa jaqueta com seu nome... Henrique.

— ...

— Ei, você é surdo? Disse que gostei de sua jaqueta!

— Ãã? Ah, a jaqueta. Nossa, sabe que eu nem notei que estava vestindo essa jaqueta. Aliás a última coisa que eu me lembro foi que saí do banheiro e fui pro quarto... Epa! Onde é que eu estou? Isso é uma danceteria? Puxa, nem reparei que tinha saído de casa!

— Eu, hein! Esse cara é maluco...

Mais um fora, Henrique. Assim você vai espantar todas as garotas do mundo. É tão simples! Você tem de ser inteligente, mas acessível; atencioso, sem bajulação; preocupado, mas não desesperado; romântico, porém contido; prático, mas não apressado; objetivo, porém apaixonado, além de mostrar que apesar de ter um rosto bonito e se cuidar, você não é vazio. É só isso o que qualquer mulher espera do homem desde a primeira cantada. Mas não deixe ela perceber que você está preocupado com o que ela espera de você. Você é o que é e ela só vai se interessar se observar sua total despreocupação com as aparências. Você é seguro, mas consciente de suas limitações.

Aonde você vai, Henrique? Não vá embora. Não desista. Você está indo bem, rapaz. Quem sabe na próxima semana, o desespero não lhe ajude a controlar a mente. Quem sabe? Henrique... Oh, Henrique...

Pastor Josías ou em nome d'O Senhor



— Pode entrar, irmão, que a casa é d'O Senhor!

Assim o Pastor Josías recebia as pessoas que pisavam na porta da Igreja. E logo começava a "catequizar" os fiéis:

— Você, irmão, irmã, você que vivia na luxúria, na entrega aos vícios, na promiscuidade. Você que tinha dentro de sua casa, dentro de seu lar, a presença nefasta d'O Demônio, manifestado nas mil faces que O Cão apresenta. Você que vivia com dificuldades, com desconforto. Passava fome, apertos de toda espécie, constrangimentos, vergonha. Seu marido lhe traía com a vizinha, você o corneava com o padeiro, seu filho se drogava, sua filha prestava caridade aos colegas da escola, seus parentes adoeciam, seus amigos jogavam bingo, truco, cacheta. Sua vida era uma verdadeira miséria, cheia de dor e inconformismo. E esse mesmo inconformismo se manifestava quando você, num espasmo de lucidez, perguntava: 'Ó, Senhor, que mal'eu fiz? Que teria eu feito a'O Senhor para receber tamanha punição? Qual seria a razão do descontentamento divino, castigando dessa maneira tão intensa a minha família?'. E a resposta não vinha. O tempo passava e a resposta não vinha. E a resposta não vinha porque O Senhor em que você acreditava não era O Verdadeiro Jesus. Não era O Jesus que está no Evangelho. Era o Jesus que as outras religiões te empurravam. Era um Jesus que não trazia nenhum bem pra você, nem pra sua família. Aí você chegou pra mim e indagou: 'por que, Pastor?'. E eu lhe chamei a esta missa para lhe mostrar o porquê. Para lhe mostrar que o Verdadeiro Jesus existe, sim. Para lhe mostrar que o Jesus existe, sim, mas tem religião que não quer lhe mostrar que Jesus existe, sim. Tem religião que não tem o interesse de lhe mostrar que o Jesus existe, sim. O que eles querem é aproveitar de você. Eles querem que você deposite sua confiança, sua credibilidade, sua fé num falso Senhor. Um Jesus que não é O Jesus Verdadeiro. Só o que eles querem é que você fique submisso a eles e lhes dê dinheiro! Sabe por quê? Eles estão em nome sabe de quem? Sabem de quem eles estão em nome? De quem? Eles estão em nome d'O Coisa Ruim. Em nome d'O Satanás. D'O Berzebu. D'O Tinhoso do Pé Preto. Tão em missão d'O Lúcifer, d'O Lambe-Bota, d'O Cão Danado. Em nome d'O Chupa-Manga. Eles são mandados d'O Demônio para roubar a alma de vocês e sabe como eles fazem isso? Sabe como que eles fazem isso? Como? Eles chegam pra vocês, contam um monte de história, pegam trechos da Bíblia e manipulam como querem. Dizem que só com eles é que vocês vão encontrar a saída para os problemas da sua família. E você, desesperado, você, desesperada, vocês caem. Acreditam. Só que eles estão mentindo !!!!. Eles querem é tomar o dinheiro de vocês !!!!!. Mas nós não vamos mais deixar que isso ocorra. Nós, e quando eu digo nós eu digo os Pastores e O Verdadeiro Jesus que nos guia, nós vamos devolver a alma de vocês. Nós vamos mostrar para vocês onde está o caminho para o Paraíso. Nós vamos mostrar para vocês como chegar a'O Verdadeiro Jesus. Vamos mostrar como chegar até Jesus e dizer: 'Jesus, eu Te amo. Eu Te amo, Jesus'. Porque Jesus, O Verdadeiro Jesus, Ele Te ama. Ele quer você ao Seu lado. Só que para isso você deve abrir mão da sua vida errada. Dessa sua vida podre, fétida. Deve abrir mão das coisas materiais, daquele apartamento no Guarujá que O Demônio lhe deu, daquele carro importado do seu marido, do luxo, do conforto. Deve renunciar aos bens d'O Nefasto e dizer: "Eu Te amo, Jesus, eu Te amo, Jesus, leva esse apartamento. Leva o carro porque eu gosto mesmo é de ônibus. Leva meu dinheiro pra construir e fortalecer a Tua obra divina, Jesus, O Verdadeiro". E nós devemos realizar o desejo d'O Senhor. Portanto, entregue tudo que você tem pr'O Senhor, em nome da Sua obra. Pode por a chave do carro importado ou nacional, os documentos também, não esqueça a transferência... Deixe tudo que você tem nos bolsos e nos cofres, que é pra obra d'O Senhor. Aleluia, irmão !! Aleluia, irmã !! Aleluia !!".

Após a missa, Pastor Josías, que não é de ferro, descansa à beira da piscina em Sua mansão. Depois de verificar o andamento da Sua obra (a reforma da cascata), o Pastor estica Seu corpo sobre uma cadeira de praia, quando é abordado por um empregado Seu:

— Posso mandar servir o jantar pr'O Senhor, Pastor?

— Aleluia, irmão !! Já estava na hora ! Pode servir, sim, que Eu tô morrendo de fome, irmão. Aleluia, irmão ! Aleluia !!