O nascimento da vida



A primeira grande provação a que se submete o candidato à vida é a ejaculação. Você, que ainda não é você, não tem sequer a certeza de estar sendo lançado no caminho certo. Não sabe se vai parar numa parede de borracha, num pedaço de papel higiênico ou se vai — seguindo os desígnios da natureza — penetrar uma vagina colo uterino adentro e encontrar sua cara-metade, o óvulo. A vida é incerta mesmo antes de ser vida.

Mesmo supondo a melhor hipótese — a da cópula reprodutória — você, que ainda não é você, não se pode declarar um vencedor, isto é, um ser vivo. Vai ter de nadar feito um gameta louco, um espermatozóide desesperado, para vencer nada mais, nada menos que 300 milhões de concorrentes. Vai ter de rezar para haver óvulo no fim do túnel, para que as taxas de progesterona e estrógeno estejam favoráveis, para que o endométrio esteja firme sobre a parede interna da vagina receptora e para que a dona dessa vagina não esteja bêbada, vestida de cigana numa festa à fantasia, praticando sexo inseguro durante o período fértil (o que aumentaria a possibilidade de você ser abortado)... Não adianta. A única certeza que você, que ainda não é você, tem é que o seu dono não era estéril, nem vasectomizado.

Terminada com êxito a angustiante maratona da natação espermática — da qual só sai um vencedor, sem possibilidades de prata ou bronze — você, que, embora ainda não seja você, está no caminho certo, deve ter conseguido penetrar no óvulo à força bruta, está morrendo de dor de cabeça e perdeu o rabo. E olha que você foi o vencedor da corrida. Imagine os perdedores...

No interior do óvulo, meu amigo, é outro papo. Se você, que ainda não é, fosse um ser vivo poderia até dizer: “isso sim é que é vida!”. Não é vida ainda, mas a fecundação foi um sucesso e o óvulo fecundado deve estar se encaminhando vagarosamente para o útero da receptora que, se tudo der certo, será mamãe. A sua mamãe.

Beleza! Tudo deu certo. Alguns dias se passaram e lá está você, ou aquilo que será você, grudado no endométrio que, graças a um tal de hormônio luteinizante, ficará firme até o fim, ou melhor dizendo, até o começo da sua vida. Ali, você permanecerá por longos noves meses, sofrendo transformações diárias e divisões celulares. Uma tal de mitose será tudo o que você fará enquanto não terminar de crescer e virar gente pequena.

É uma rotina desgastante: multiplicação de células, desenvolvimento de órgãos e tecidos, decidir o sexo na mais tenra idade. Como saber o que será melhor: ser homem ou ser mulher? Você ainda nem conhece o seu pai para ter uma referência masculina! Ser homo ou heterossexual? Acaba resolvendo o problema escolhendo apenas o sexo, deixando a preferência sexual para depois. E continua crescendo.

Chega uma hora em que você, que finalmente já é você, virou um bebê de verdade e se acostumou a receber alimento e oxigênio pelo umbigo. Nesse momento, a natureza resolve polemizar de novo, forçando sua mãe a te botar para fora. Antes, tinha alimento, calor, conforto e segurança. Lá fora, longe das entranhas maternas e da submersão amniótica, sabe lá o que lhe aguarda. Mas não tem jeito: os homens de branco dizem que se você não sair pela mesma porta por onde entrou, eles serão obrigados a cortar a barriga de sua mãe para tirá-lo de lá! Que sacanagem!

Você, mais você do que nunca, resolve sair por bem. E sua mãe, que já teve outros filhos, põe você para fora tão rápido que se o médico não fosse goleiro do time do PS, e dos bons, você teria ido parar num canto da sala.

“Pois bem, já saí. E agora, cadê o ar? Que palhaçada é essa? Vocês me tiraram do bem-bom, do quentinho, do escurinho, pra me jogar num mundo frio, cheio de luz, sem ar e, o pior de tudo, de ponta-cabeça! Eu quero respirar... Moço de branco, larga minha perna e me dá ar! Não. Não bate em mim, moço. Não! Buaaaaahhhh... Ufa! Até que enfim eu consigo respirar. Eu quero a minha mãe!”.

Pronto. O pior já passou. Você já respira e está no colo quente e acolhedor de sua mãe. Já abre os olhos e vê pessoas muito maiores e mais bobas que você. Um homem de bigode beija sua mãe, depois você, depois faz caretas e fala como um retardado.

“Meu Deus, será que esse idiota é o meu pai! Como é que minha mãe foi se casar com alguém tão imbecil!? É, mas esse chocalho que ele tem na mão é bem legal. Me dá. Me dá aqui. Isso. Quer saber, eu tô morrendo de fome. De chocalho ninguém vive. Que estranho! Eu nunca senti fome antes! Mas também, olha aqui, eles cortaram meu umbigo! Como é que eu vou comer agora, meu Deus?”.

Não é à toa que você adora sua mãe. Ela ficou com você desde quando você nem era você e, agora que lhe cortaram fora o umbigo, ela inventou um jeito de alimentar você com os seios. E pensando bem, esse método é bem melhor que o outro...

“Tá bom. Quem foi o engraçadinho que colocou esse negócio pesado e fedido na minha fralda, hein? Aposto que foi o cara de bigode que se diz meu pai. Ah, ele me paga. Aí, bigodudo, arruma uma fralda limpa que esse negócio incomoda... Minha mãe é demais. Já percebeu que eu tô cagado e vai me trocar. Como ela sabe o que eu quero? Ontem mesmo, quando eu estava prestes a explodir depois da mamadeira, ela veio e me deu uns tapas nas costas. E o do bigode morreu de rir do barulho que eu fiz com a boca. Depois me pegou no colo, brincamos com o chocalho, ele me jogou para cima várias vezes, eu vomitei na camisa dele... essas coisas. Aí, do bigode, até que você é bem legal, sabia? Acho que você pode mesmo ser meu pai!”.

— Você ouviu, mulher? Ele falou “papá”!

— E já me chamou várias vezes de “mamã” também!

— Esse é o meu garoto!

— Que lindinho!

Os pais, via de regra, são bobos mesmo. Mas é um tipo de bobagem saudável, gostosa, fundamental à vida. Sempre estão lá para fazer tudo para você. Você vai crescendo, sua mãe vai ficando grisalha, enquanto seu pai prefere abrir mão dos cabelos a tê-los brancos.

Quando você menos espera, começa a sentir uma sensação diferente ao ver a filha de uns amigos do seus pais. Você não sabe descrever — você mal sabe falar! — mas existe alguma coisa entre vocês dois. Provavelmente, mais uma das inúmeras provações a que a vida nos submete.

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