Simpósio cósmico
A sala de reuniões vazia aguardava a chegada de ilustres celebridades (ou deveria dizer entidades?) nacionais para um importante encontro. Ali estariam juntos os maiores nomes da nossa cultura espiritual: bruxos, curandeiros, videntes, médiuns, progenitores-de-santo (refiro-me a pais e mães-de-santo), quiromantes, esotéricos, especialistas em anjos, cabalistas, entre outros, além da presença inevitável dos gnomos, duendes, leprechaus, anjos, fantasmas e entidades etéreas em geral.
A idéia era ótima: promover um congraçamento telúrico entre os maiores expoentes do misticismo e da religião multi-étnica brasileira. Afinal, um país de diversas influências culturais, resultado de uma fusão complexa de várias raças e credos, só poderia ter um caldo religioso tão diverso e encorpado.
Os convidados já estavam chegando, incorporados ou à paisana, sozinhos ou em bandos, com seus trajes típicos, adereços de toda sorte. Alguns penetras também já se encontravam ali: é difícil barrar a entrada de almas penadas sem ingresso.
A muitos quilômetros do ginásio, um carro quebrado. O capô aberto, dois homens olhando para o motor. Um deles, o dono do automóvel, queixava-se:
— Depois falam que carro importado é que é bom. Esse aqui é zero, alemão e parou. Você viu quantos fusquinhas velhos passaram por nós?
A irritação não era sem fundamento. Tratava-se de Saulo Botelho, um dos mais famosos bruxos da cidade, vendedor de milhares de livros, um escritor de best-sellers. Tinha acabado de desobstruir um enorme engarrafamento na marginal Tietê com o intuito de não aumentar seu atraso, que já era enorme, e de repente o carro pára. Que diabo!
— É mas a culpa não é dos alemães. O Fusca é alemão!
Brilhante observação. Pai Dudu era mesmo genial. E o fusca era a prova irrefutável de que o homem evoluiu demais. Tanto que tiraram o oblongo e desconfortável de linha (contrariando o desejo daquele presidente topetudo). Pai Dudu, sempre cheio de idéias incríveis, sugeriu:
— Não é o carburador?
— Não. Esse carro nem tem carburador. Tem injeção.
— Então vai ver que é isso: a agulha quebrou. Vamos até uma farmácia comprar outra seringa...
— Não, Dudu, menos. Tô falando de injeção eletrônica. Quer dizer que não tem carburador: o computador é que faz a mistura entre o ar a o combustível. Entendeu?
— Áfe...
De dentro do carro vinha uma voz irritada:
— Eu não disse? Eu avisei...
Mãe Dinorá estava uma arara. Tão possessa que nem se dera ao trabalho de sair do carro. Até porque sua especialidade é previsões, não mecânica automobilística. Ela havia previsto que alguma coisa estranha envolvendo pessoas e máquinas iria acontecer naquele ano. Dito e feito.
— Eu avisei...
— Já ouvi, Mãe Dinorá. Já ouvi. Mas a senhora precisa ser mais específica em suas previsões. Como é que eu ia saber que isso ia acontecer! Inferno!
— Bate na boca, Saulo, que Exu vem atrás! Dá três voltas pulando no pé esquerdo, com os braços cruzados, cantando uma oração pra Oxum!
— Pra quê, Dudu?
— Pra espantar a energia negativa. Você falou o nome do Cão. Isso atrai maus fluidos.
— Não se preocupe comigo, não, que pra evitar mal olhado eu faço sempre o Exercício Para Espantar Olho Gordo, que eu mesmo desenvolvi.
— Que diabo é isso?
— Você fecha os olhos e mentaliza uma Kombi rosa pegando fogo. Depois levanta a unha do polegar da mão esquerda e joga uma mistura de sal, vinagre e limão. Se não tiver limão serve álcool mesmo. Não esquece de sentar nu sobre cacos de vidro espalhados em um formigueiro, nem de passar pólvora na virilha e tocar fogo. É batata! Nunca falha! Não há quebranto que resista ao exercício...
— Mas não dói muito?
— Não sei. Eu não faço isso em mim, faço nos outros. Sou bruxo, não burro.
— E pra quê serve a Kombi rosa pegando fogo?
— Isso é só ilustrativo. Ajuda a vender mais livros.
Mãe Dinorá desce do carro.
— Como é, já descobriram o problema?
— Eu sou bruxo, não adivinho. O Pai Dudu aqui é que devia descobrir o problema.
— Eu? Mas eu deixei meus búzios na mala. Não dá pra prever nada assim. Já a Mãe Dinorá bem que podia pegar as cartas...
— Xiiii! Agora que eu vi: esqueci meus óculos. Sem eles eu não posso tirar as cartas. Mas eu avisei...
— Já sabemos! — respondem em uníssono.
— Não falta gasolina?
— Isso é uma visão ou um palpite, Dinorá?
— É um chute.
— Não.
— Certeza, Saulo?
— Claro. Esse carro é a álcool.
— Eu vou voltar pro carro. Agora vocês que resolvam o problema. Eu avisei...
— Bom, pelo menos não está com cara de chuva.
Ficaram os três esotéricos dentro do carro, esperando a torrente de granizo acabar. Quatro horas depois, conseguem chegar ao ginásio. Estava vazio. Só restavam as sobras. Galinhas, farofas, cinzas de incenso, velas derretidas, panfletos zen-budistas, ectoplasma espalhado por todo lado. A festa deve ter sido boa. Diante daquilo, era impossível que não surgisse revolta entre os três atrasados.
— Que belo vidente você é, Pai Dudu! Nem percebeu que o carro estava sem uma gota sequer de combustível! Diabos!
— E você? Um bruxo que não sabe transformar água em álcool etílico! Pior que isso só a Mãe Dinorá, que não conseguiu prever uma coisa tão óbvia.
— Eu falei: olha a gasolina! Olha a gasolina!
— Pois é! Mas não falou: olha o álcool! Olha o álcool!
— Eu estava sem os óculos. As informações ficam nebulosas...
— Meus búzios estavam na mala...
— E minha varinha? Vocês me viram de varinha? Um bruxo sem varinha não é nada...
Desistiram de brigar. Era inútil. Viraram as costas para as provas concretas do sucesso do encontro. Teriam que ir embora sem a menor participação. Sem uma foto sequer dos irmãos Vapporeto. Levaram um pouco de ectoplasma num copo plástico, de recordação. No caminho de volta o silêncio reinava absoluto dentro do carro. Só se ouvia uma frase insistente, de tempos em tempos:
— Eu avisei. Eu avisei...
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giacca, synbad, tchuca...
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