Não flambem a salsicha de Hermann



Hermann era do tipo sisudo, casmurro. Não se deixava abalar por nada. Ou quase nada. Do alto de seus quase dois metros de altura, poucas situações que Hermann presenciava eram capazes de alterar sua fleuma nada germânica. A maioria delas dizia respeito à sua salsicha.

Certa vez um colega de escola — isso faz um bom tempo, Hermann já terminou a faculdade — entrando no refeitório cujo chão havia sido recentemente encerado, escor¬regou e caiu, projetando sua bandeja com o almoço na infeliz direção de Hermann. Hermann olhou para o colo e viu a calça do uniforme ocre coberta pela sopa verde de ervilhas. Não moveu um dedo. Nem a sensação pastosa e o desconforto tér¬mico que acometiam suas par¬tes pudendas puderam alterar seu temperamento aparentemente pacífico. O garoto descuidado, morrendo de medo daquele que já era o maior aluno do colégio, também não conseguia se mexer, embora parecesse que Hermann não houvera levado o incidente a sério. Ao levantar a vista, no entanto, Hermann observou sua salsicha — ele sempre comeu salsicha em todas as refeições — submersa num rio de refrigerante dietético também oriundo da bandeja desorientada. Hermann levantou-se, dirigiu-se ao garoto prostrado no chão e disse, num tom grave, antecipadamente fúnebre:

— Ninguém zomba da minha chalchicha e sobrevive...

Na manhã seguinte, o clima no velório não poderia ser pior. A perda de uma vida inocente e jovem parecia não ser ver¬dade. Mas era. O pai de Hermann conseguiu encobrir o caso dando-lhe o caráter de acidente, graças à sua amizade com o delegado Peixoto, o encarregado do caso. Mesmo assim, Hermann teve de ser transferi¬do do colégio e seu pai, militar reservado, mandou-o para o exterior, numa série de intercâmbios mal sucedida.

Nos países da Europa, incidentes semelhantes envol¬vendo terceiros com a salsicha de Hermann culminaram em tragédias de igual monta. Às vezes, um sortudo escapava da morte, mas nunca da invalidez irreversível. Os contatos de seu pai rompiam horizontes e limites de justiça e moralidade mas não eram infindáveis. O mili¬tar começava a não saber mais a quem recorrer ou o que fazer para corrigir a conduta do filho, sem que este tivesse que pagar por seus crimes.

— Hermann, meu filho, te orienta! — dizia o pai, numa cres¬cente desesperança.

Nos Estados Unidos, a última esperança de seu pai, Her¬mann não conteve a fúria quando teve sua salsicha der¬rubada por um guri americano num movimentado fast-food nova-iorquino:

— Nobody plays with my shaushage and remains alive...

Sem outra alternativa, o pai de Hermann trouxe o filho de volta ao Brasil, país onde o menino nascera e fora educado. Porca¬mente educado, é verdade, mas fora. Seu pai não cansava de im¬plorar ao filho:

— Hermann, meu filho, te orienta!

Após uma longa conversa com Hermann e decorridos al¬guns meses, seu pai recobrou a fé de que Hermann teria sal¬vação. Anos se passaram sem que Hermann fizesse nova vítima. Formou-se, finalmente, em Ciências Sociais. Seu pai, crente na regeneração do filho e agora doente e desenganado pela medici¬na, sentia-se mal por ter de deixar a vida, mas satisfeito pela certeza do dever cum¬prido. Mal sabia que a saga de Hermann não havia terminado. É que Hermann não freqüentara lanchonetes nem restaurantes no período de convalescência de seu pai e, por isso, não cometera outros homicídios.

O pai morre. Agora, depois da perda do progenitor, Her¬mann pode voltar a sair e fazer o que mais gosta: comer sua sal¬si¬cha. E assim recomeça a saga de Hermann.

* * *

Hermann abre o jornal, procura o caderno de gastrono¬mia e folheando-o, encontra o primeiro alvo de seu desejo de comer salsi¬chas. Era uma choperia chamada Chope e Batata Fritz. O dono, o Batata do nome, é um bem-humorado italiano que veio para São Paulo na década de 60 e o pouco dinheiro que conseguiu juntar foi aplicado na choperia. O Fritz do nome era jogada de marketing. Pensou até em abrir uma cantina mas achou que a choperia se¬ria mais negócio.

Era um lugar simples mas elegante. Despojado porém agradável. Tranqüilo e bem freqüentado. Parecia ser o ambiente ideal para Hermann matar a saudade da salsicha.

Os amigos de faculdade de Hermann tinham feito uma re¬união na época da morte de seu pai, na qual decidiram que iriam se revezar para cuidar que Hermann não fizesse mais víti¬mas. Desse modo, Grashof e Nusselt, seus únicos amigos re¬manescentes mon¬tam vigia alternada sobre Hermann.

Grashof segue o Opala de Hermann em sua Saveiro ver¬melha. Chove. Chove muito. Incessantemente. Grashof teme perder o Opala e não conseguir evitar o pior. Na porta do Chope e Batata Fritz, o Batata recebe sorridente os fregueses, enquanto distribui toalhas:

— Vamo intrano chi a casa é di voceis tutti! — dizia o Batata, que não é um bom articulante do nosso idioma mas é certa¬mente um excelente anfitrião.

Grashof entra minutos depois de Hermann pois não en¬con¬trava lugar para estacionar. Na entrada, Grashof pergunta, tomado pela ansiedade e pelo desespero:

— O Hermann já foi servido?

— Má chi Hermann? Noi num servimo Hermann aqüi. Só servimo chopes e salsicha. Di vez in cuano, un chiocolato no inverno, junto con o cafezinio, má é só.

— O Hermann não é de comer, meu senhor. Quero dizer, se é, ou não, é problema dele... Eu estou procurando um amigo meu. Bem alto, alemão...

— Ah, eco! Ele pediu unas salsichas má já devi di tá sendo servido agora.

— Meu senhor...

— Seniore non, por favore. Mi chiamano di Batata.

— Batata... como vocês servem a salsicha aqui?

— Ora má como?! Noi flambamo, é chiaro!

Nos anos em que Hermann se ausentou do mundo gas¬tronômico paulistano, muitas coisas mudaram. Uma delas foi a salsicha. A culinária moderna, forte¬mente influenciada pela Nouvelle Cuisine Francese, aderiu aos costumes incendiários do país de Joana D'arc e começou a servir a salsicha — que na tradição alemã deveria ser simplesmente co¬zida em água fer¬vente — completamente flambada num bom vinho branco. Para Her¬mann, que não havia tolerado nem refrigerante dietético na sua sal¬sicha de menino, o processo de flambagem na vida adulta seria considerado um crime capital cuja pena mínima estaria entre a decapitação e a empalação a frio.

— Não flambem a salsicha de Hermann! — suplicou Grashof na tentativa vã de evitar um desastre.

No entanto, o garçom já se aproximava de Hermann, que estava ansioso pela chegada do tão precioso quitute, achando tratar-se de salsichas tradicionalmente cozidas. Mas nas mãos do aspirante a mâitre estavam duas gordas, tenras e graúdas salsichas de ganso flambadas ao vinho branco. Sim, salsichas de ganso. O porco só servia para fazer gelatina de bisteca com chantilly, outra novidade da culinária moderna.

Rapidamente, Grashof voa sobre o garçom. Antes que o conjunto garçom mais bandeja mais salsicha mais Grashof chegue ao chão, este último agarra com volúpia as salsichas e as leva à boca, encaixando-as uma de cada lado da arcada dentária, entre as gengivas e as bochechas.

Hermann, estarrecido, questiona o amigo sobre aquela ati¬tude. Queria saber, na verdade, se o amigo estava zombando com suas salsichas.

— Estas não eram as suas salsichas, Hermann — disse Grashof após engoli-las quase inteiras, o que dificultaria bastante seu processo digestivo. — Eram as minhas salsichas, as que eu ha¬via pedido por telefone. E se eu não chegasse a tempo esse garçom teria se equivocado e entregue as salsichas erradas a você.

Hermann era burro. Muito burro. Incessantemente burro. Demorou certo tempo para que ele entendesse a versão contada pelo amigo, mas acabou aceitando.

— Ninguém zomba com a minha chalchicha. Nem você. Mas se era a sua chalchicha, tudo bem.

Hermann e Grashof saem juntos do restaurante, depois de terminarem o jantar, no qual serviram salsichas especiais para Hermann. Enquanto este pensava na história contada pelo amigo, Grashof teve tempo suficiente para explicar a situação ao garçom, ao Batata e ao cozinheiro, que, por ser um antigo mestre-cuca alemão, ainda conhecia aquela velha forma de preparar as salsichas, já em desuso. Despedem-se e vão para as respectivas casas. Grashof toma sais de frutas no caminho.

* * *

O segundo estabelecimento procurado por Hermann o recebe com certo des¬caso. Essa noite era a vez de Nusselt vigiar o amigo assassino.

“Este é um daqueles lugares onde ser cliente não é mais do que obrigação, na opinião do dono”, pensa Hermann.

O ambiente é diferente dos restaurantes convencionais. Na recepção há um balcão com uma recepcionista muito maquiada, gorda, desajeitada e insatisfeita.

“Que lugar esquisito! — pondera. — Essa luz vermelha, o néon da fachada dizendo Relax. Só falta eu ter me metido numa fria. Mas o anúncio do jornal despertava grande expectativa: ‘Crioulo. Atlético. 10 anos de experiência. Salsicha enorme. No Relax, a partir das 10:00 horas da noite’. Talvez tenham mudado de dono e o crioulo não esteja mais na cozinha. Ou então ele não torça mais pro Atlético”.

— Boa noite. Eu gostaria de saber se o crioulo ainda tra¬balha aqui. — pergunta Hermann.

— Trabalha. Mas o senhor...

— Eu vim mais pela chalchicha enorme.

— Pra homem é mais caro. São 20 real! — inflaciona a re¬cepcionista cafetina.

— Se a chalchicha for grande mesmo, até que vale a pena.

Quando Nusselt finalmente consegue estacionar seu Mille, dirige-se ao estabelecimento em que Hermann entrou e, ao ler os dizeres Relax na porta, tranqüiliza-se. Desta vez não seria difícil convencer o Hermann de que aquela não era sua salsicha. Hermann sai, após alguns minutos, pálido, triste e de¬cepcionado.

— Endereço errado. Chalchicha errada. E enorme... — re¬signa-se.

Hermann é mesmo burro. Eu avisei.

* * *

Procurando outro endereço para saborear uma boa salsi¬cha — desta vez no caderno certo do jornal, não na sessão erótica —, Hermann se depara com um anúncio estarrecedor: "Venha provar a melhor salsicha flambada da cidade. Aberto todos os dias, inclusive ho¬je". Hermann observa algo errado na frase. Bem perto da palavra "salsicha". Já sabe: é o "flambada". Não se flamba uma salsi¬cha, para Hermann. A salsi¬cha deve ser cozida, como prega a tradição.

Dirige-se ao local disposto a honrar a tradição. Ordena seu pedido ao garçom e aguarda impacientemente a chegada da salsicha como o réu aguarda o veredicto.

Grashof e Nusselt se atrapalham mais uma vez, agora por causa dos flanelinhas que insistem em exigir pagamento antecipado para cuidar dos carros do estacionamento. Os dois amigos estavam trabalhando juntos nessa noite, fugindo ao de costume. Entram gri¬tando desesperados no restaurante:

— Não flambem a salsicha de Hermann!!!

Era tarde. Encontraram os garçons, o gerente, o dono, o cozinheiro, todos mortos. Até os clientes agonizavam pelo chão. À ex¬ceção dos que conseguiram fugir e dos que não pediram salsicha, todos foram executados. Hermann se aproxi¬ma de Grashof e Nusselt, que, de joelhos, tentam uma última súplica.

— Nós não podíamos fazer nada, Hermann. O sistema dita as regras. A política, a sociedade, os costumes, até a culinária. Tudo é controlado pelo sistema. Não pudemos evitar que se flambassem as salsichas. Nós sentimos muito.

Foi em vão. Hermann engatilha a arma e executa os dois últimos amigos que lhe restava, justificando com sua máxima de in¬fância:

— Ninguém zomba da minha chalchicha e sobrevive...

Sem amigos, Hermann segue sua jornada solitária, como um justiceiro procurando vingança, em busca de sua salsicha cozi¬da. Tradicionalmente cozida.

E.T.: Hermann, Grashof, Nusselt e a salsicha flambada são fictícios. Os nomes foram alterados para resguardar a integri¬dade das pessoas e do quitute. De qualquer forma, haja o que houver, nunca flambem a salsicha de Hermann.

No comments:

Post a Comment