Instantâneos na cidade



DOAÇÃO MUDA

O ônibus vai da Praça da Bandeira até a Vila Cruzeiro. Numa parada num ponto da Avenida 9 de julho, sobe um garoto de aparentes catorze anos, pula a roleta (com o consentimento do cobrador) e distribui aos passageiros, um a um, pequenos recortes de papel com o seguinte texto: “Podia estar roubando e matando em vez de estar pedindo. Agradeço a colaboração. Aceita passe”. Terminada a entrega, retorna recolhendo os papéis e as eventuais doações, normalmente moedas ou passes de ônibus, agradecendo aos colaboradores com um aceno de cabeça. Aos demais não diz palavra. Puxa a corda de parada para, no ponto seguinte, já na Avenida Santo Amaro, descer e trocar de ônibus. Quando a porta abre, agradece ao motorista com um assobio e ao cobrador com o polegar em riste. O garoto mudo faz da transação silenciosa o seu ganha-pão.

TRANSAÇÃO ILEGAL

Na madrugada tranqüila, o carro que vem veloz pela Avenida 23 de maio reduz e vai para a direita, parando sobre as faixas pintadas no chão, antes de uma bifurcação. Descem do carro um homem e uma mulher, apressados. Ela se deita sobre o capuz do motor do carro, levanta a saia e abre as pernas. O homem abre o zíper da calça e transa com a mulher sob o testemunho do sereno e da lua. Minutos depois, um carro da polícia pára ao lado dos amantes e dá voz de prisão. O ato que parecia sigiloso fora flagrado pelas câmeras indiscretas da Companhia de Engenharia de Tráfego e estava registrado em VHS no departamento. A transação ilegal agora anima as aulas na academia da corporação da CET.

ESTÔMAGO EMBRULHADO

Três da manhã de um sábado, no meu quarto, deitado na cama, aguardando a trégua da insônia para dormir, escuto a chegada de um carro na rua. Os passageiros, aparentemente ébrios, falam alto, riem e me obrigam a compartilhar sua felicidade. A farra foi boa, mas o fígado de um dos beberrões, chamado Paulo, não agüentou. (O beberrão é que se chama Paulo, não seu fígado). Levanto para confirmar através das frestas da persiana minha teoria sobre o fígado do cara. Vejo um homem, provavelmente o Paulo, escorado por dois amigos que o posicionam em frente àquele recorte na calçada destinado ao plantio de pequenas árvores. Ouço a recomendação de um dos amigos: “Vai, Paulão, manda ver!”. Quase em seguida, Paulão segue o conselho do colega e pode-se ouvir sonora golfada, úmida de álcool etílico, forrando o canteiro na calçada. Animados, os amigos riem e comentam: “Boa, Paulão! Boa!”. Logo depois, outra sugestão do amigo: “Mais uma, Paulão! Mais uma!”. Nova golfada. Rindo de bobo, afasto-me da janela para deitar pensando como pode ser engraçada a desgraça alheia quando vista por uma fresta anônima. Antes de cair no sono, ouço uma última dúvida de um dos rapazes: “Cê tá legal, Paulão? Hein?”.

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