Tributo ao Millôr fabuloso III: o Boi-poeta e o Carrapato-repentista



Na natureza os fenômenos têm caráter compensatório, visando o restabelecimento constante do equilíbrio. Assim, buscando compensar a racionabilidade oferecida à humanidade em detrimento das demais espécies, criaram-se duas curiosas aberrações, em fase experimental. A primeira, um boi com dons literários. A segunda, um carrapato cantador e violeiro, levemente nordestino.

Às estranhas criaturas, que de agora em diante chamaremos Boi-Poeta e Carrapato-Repentista, foi imposta a convivência mútua como provação (1). O sucesso do experimento inaugurando duas novas raças e, daí, a produção de espécimes em larga escala dependiam do desempenho e do comportamento dos protótipos sob teste.

O Boi-Poeta inicialmente foi solto num belo e farto pasto, acreditando-se que a paisagem bucólica, e não a urbana, condizia mais adequadamente com a metade irracional do bicho. E também com a outra metade, uma vez que poeta que se preza mora na cidade mas sonha com o campo.

E lá se via o Boi-Poeta percorrendo o pasto, ruminando idéias e capim, harmonizando a beleza de uma manhã em decassílabos:

Varro o verde dessa terra encantada
Tendo o horizonte por meta e destino
Não é findo meu dever paulatino:
Comer grama na manhã ensolarada.


Para ele tudo era belo, exceto nas visitas das anuns, que, embora lhe comessem os insetos parasitas do dorso, eram inoportunas pois tiravam sua concentração. Poeta precisa de inspiração e concentração para compor poemas bonitos. Quando vinham as anuns, seus versos perdiam a poesia:

Anuns, que tendes penas para voar,
Tende pena deste dorso muar,
Levantai vôo agora, que’inda podeis:
Logo comigo vós vos fodereis.


Assustadas pela ameaça, as aves parasitas deixaram de freqüentar o couro daquele boi, poeta e ranzinza, único a não aceitar a presença das anuns.

Desse modo, o destino encontrou uma forma de cruzar os caminhos do Boi-Poeta e do Carrapato-Repentista (2). Este, o carrapato, percorreu toda a extensão do couro daquele, buscando a melhor localização para se estabelecer. Chupava sangue bovino e entoava cordéis que compunha:

Vou andando noite e dia,
Buscando minha morada.
Enfrento com valentia
Qualquer tipo de empreitada:

Entro e saio de orelha,
Coxa abaixo, coxa acima,
Ando reto e de esguelha,
Nada disso desanima.

Lugar quente eu procurei,
Espaçoso e protegido,
Entre as pernas encontrei:
No rabo estou escondido.


E desde que o Carrapato-Repentista resolveu se assentar no ânus do Boi-Poeta, começou a confusão. De um lado o boi não sabia o que fazer para afastar o intruso daquele local tão íntimo. O incômodo era unilateral, no entanto: para o carrapato, apesar do mal cheiro, o ambiente era quente, úmido e protegido. Inclusive do próprio Boi, que não conseguia alcançar a região e só podia abanar o rabo na tentativa de intimidar o aracnídeo.

O Carrapato, feliz da vida (3), seguia entoando seus cantos “severinos”, enquanto o Boi implorava ao invasor que simplesmente trocasse residência, agora em redondilhas maiores:

Da vida nada espero
Nada tenho, nada quero
Com empenho, com esmero
Entrego-me a este bolero

Até mesmo a digestão
No ser bovino é morosa
Mesmo não sendo gostosa
Vem p’ra outra mastigação

E como se não bastassem
Os problemas naturais
Carrapato-Repentista
Aluga-me as vias anais

— Vai-te embora, Carrapato
Pois não te quero comigo
Se insistires em ficar
Aplico em ti um castigo.


Mas o Carrapato-Repentista não acreditava que o Boi-Poeta tivesse condições de castigá-lo de fato. Permaneceu no ânus do boi e ainda o provocou:

Boi-Poeta é bem grande
Couro duro pra danar
Mas cá não há quem me mande
Embora pra outro lugar

Já lhe disse companheiro
É melhor se acostumar
Aqui tem cheiro de banheiro
Mas mesmo assim eu vou ficar

Não adianta teu queixume
Seu poder é só falar
Em teu cu estou imune
Pára de me aporrinhar!


O Boi-Poeta bem que tentou avisar e foi até bastante paciente. Diante do descaso do Carrapato-Repetista frente ao desconforto do hospedeiro, este não viu alternativa: sentou-se sobre o próprio rabo, esmagando o Carrapato. E como não bastasse, deu um fétido pum. Assim, acabou a vida do Carrapato-Repentista: homicídio com requintes de crueldade.

MORAL: Carrapato no rabo dos outros é refresco.

SUBMORAL: Cada um com seus problemas.

SUB-SUBMORAL: Boi não é burro.

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(1) As fábulas sempre dependem do confronto de situações paradoxais.

(2) Nas fábulas sempre se dá um jeito de forçar um encontro. À propósito, o carrapato não é um inseto mas um aracnídeo. Não sabemos se anuns se alimentam apenas de insetos, portanto, supusemos que coma qualquer bichinho minúsculo que fique sobre o dorso do boi, inclusive o carrapato.

(3) Só um carrapato estaria feliz num lugar desses.


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