Tributo ao Millôr fabuloso II: terra de ninguém



Um casal de posseiros, Zeca e Berê, cansados da difícil vida de meeiros, resolveram juntar um pequeno grupo de trabalhadores rurais e liderar um movimento autônomo de reforma agrária aleatória. Apesar de ser um movimento, a idéia era dividir em diversas frentes pequenas de ocupação, de modo que não fossem localizados pelos verdadeiros proprietários. Acreditavam que a ocupação em massa não autorizada de terras improdutivas era inviável e que espalhados poderiam conseguir melhores resultados (1). No entanto, nenhum de seus companheiros aprovou a idéia, preferindo permanecer em um único grande grupo. Mas Zeca e Berê acreditavam mesmo naquela idéia e resolveram se isolar dos demais companheiros e tentar sozinhos conquistar seu espaço (2).

Partiram por uma estrada sem destino certo e encontraram um terreno imenso — só se via pasto até onde a vista alcançava — e, posto tratar-se de terra improdutiva, sem plantio, pularam a cerca e ocuparam a região. Na cabeça dos dois só passava um pensamento: "Deus tá do nosso lado; essa terra toda não pode ser dum só home!" (3). Primeiro, armaram uma tenda, onde se abrigavam e dormiam. Fizeram um reconhecimento do terreno, andaram até cansar as pernas e não encontraram nenhum sinal de vida, exceto uma vaquinha malhada, solitária e feliz pela fartura de pasto que se lhe dispunha. Então, delimitaram uma área sobre a qual arrancaram a grama, revolveram o solo fértil, plantaram boa variedade de alimentos. Entre eles, aipo-doce (4), leguminosa exótica mas de semente barata e de colheita fácil e rápida. A vaquinha teve seu campo reduzido a um pequeno cercado, mas recebeu em troca o mimo dos novos donos, que acabaram criando extrema afeição pelo animal.

Os dias passaram, as sementes germinaram, cresceram caules e folhas, frutos despontaram no pequeno horizonte ocupado. Vendo a prosperidade em andamento e a ausência do proprietário —que sequer tomava conhecimento da presença dos ocupantes—, o casal ratificou sua teoria: "Deus tá do nosso lado; essa terra toda não pode ser dum só home!".

Com a primeira colheita de aipo-doce —uma safra excelente e volumosa, muito acima das expectativas e da necessidade— chegou uma notícia milagrosa: uma praga assolara os campos produtores de aipo-doce da redondeza, tornando-o um produto raríssimo no mercado e cuja procura estava em crescente (e intrigante) expansão. O aipo-doce seria literalmente a salvação da lavoura para o casal (5).

Venderam toda a produção de aipo-doce a um preço altíssimo e conseguiram, em pouco tempo acumular uma pequena fortuna. Sem explicação aparente, o aipo-doce só crescia naquele pequeno território, e foram várias e boas safras, tomando todo o terreno de que dispunham.

Zeca e Berê enriqueceram. Ficaram conhecidos nos arredores como O Rei e a Rainha do Aipo-Doce. O proprietário de direito das terras foi ao encontro dos donos de fato. Estes temiam uma ameaça de expulsão e repetiam, receosos: "Deus tá do nosso lado; essa terra toda não pode ser dum só home!". O proprietário chegou mas a sorte mais uma vez bateu à porta dos Reis do Aipo-Doce: o infeliz perdera todo o dinheiro que acumulara numa vida e agora tinha de se desfazer da quase totalidade de seu terreno. Ofereceu, quase de graça, noventa por cento de suas terras aos ocupantes, que imediatamente fecharam acordo.

Os pés de aipo-doce se multiplicaram por uma vasta extensão e Zeca e Berê tornaram-se milionários. Compraram carros, roupas, mudaram os hábitos, mandaram os filhos para estudar na capital. Agora, faziam parte da elite (6).

Os homens e as mulheres que antes trabalhavam com Zeca e Berê ouviram falar de sua prosperidade. Partiram para averiguar se era mesmo verdade ou, em caso contrário, que fim teriam tido os dois lunáticos. Encontraram Zeca e Berê milionários e confirmaram toda a história. Parece que a tese antiga do casal tinha surtido efeito.
Como Zeca e Berê já tinham conhecido a pobreza, resolveram dividir suas terras com todos os seus colegas, e ainda assim, continuavam com uma excelente quantidade de terras. Afinal, Deus estava do lado deles mas “toda aquela terra não poderia ser dum só home”, como eles mesmos pensavam. Ensinaram também as técnicas e os truques para se produzir aipo-doce, pivô do sucesso do casal ascendente. Em pouco tempo, os novos agricultores colheram suas safras de aipo-doce, acreditando que obteriam o mesmo sucesso que os pioneiros conseguiram. Mas foi tanto o aipo-doce produzido que o preço do produto despencou e todos foram à falência, inclusive Zeca e Berê.


MORAL: Se a vida lhe der um limão, faça uma limonada, mas não espalhe pros outros.

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Notas:

(1) Isso prova que homens e mulheres de ideais não são sempre tão sensatos nem tão inteligentes.

(2) Isso prova que homens e mulheres de ideais são sempre muito teimosos.

(3) Na verdade são dois pensamentos. Isso prova que homens e mulheres de ideais nem sempre são tão bons de conta.

(4) Aipo-doce provavelmente não existe. Trata-se de uma licença poética para mostrar que a fábula não tem caráter verídico.

(5) Às vezes a teimosia pode ajudar.

(6) Isso prova que os ideais de uma pessoa nem sempre são inabaláveis.


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