Tributo ao Millôr fabuloso I: os três sábios e o mendigo



Um mendigo do centro da poluída cidade de São Paulo (1) vivia, como todo mendigo, sua vida miserável, dividindo seu tempo entre o ócio e a falta do que fazer (2). Passava na porta dos restaurantes e, antes de ser afastado pelo porteiro, apreciava os lindos e apetitosos pratos que não podia provar. Senão, ficava na frente dos mercados observando as pessoas saindo com as compras que só seriam suas em seus sonhos (3). A descrença e o conformismo eram tamanhos que o mendigo nem mesmo questionava mais sua condição de miséria absoluta.

Um dia, quando amanhecia e os primeiros raios do sol permitiam ver as cores da cidade, o mendigo foi abordado pela insólita presença de três ricos sábios chineses (4). Yang, o mais jovem, iniciou a conversação: "Honolálio senhor mendigo, estamos aqui pala plopor ao senhor uma opoltunidade única em sua vida (5), que dependelá, evidentemente, da sua aceitação". O mendigo não sabia do que se tratava, mas como nada podia ser pior que sua situação, concordou prontamente: "Manda!". Sung, o do meio, continuou: "Se o senhor conseguir deciflar a chalada que nós vamos plopor, o senhor podelá desflutar uma vida de liqueza e plazeles, à qual nós estamos habituados e da qual nós abdicaremos em seu favor; caso contlálio, o senhor selá condenado a viver na mais absoluta misélia pala o lesto de sua vida e nós continualemos nababos". O mendigo, não tendo nada a perder, aceitou: "Prossiga!". Ling, o mais velho e, portanto, o mais sábio (6), enunciou a charada: "Senhor mendigo, quantas estlelas existem no céu?". Os três sábios sorriam disfarçadamente pela certeza de que seria impossível para um mendigo saber a resposta a uma questão não decifrada pela ciência. Com a tranqüilidade típica de quem já chegou no fundo do poço (e ainda assim descobriu um calabouço), o mendigo respondeu com segurança: "Há tantas estrelas no céu quantas são as gotas d'água no oceano!" (7). A resposta caiu sobre a cabeça dos sábios como uma bola de boliche. Na dúvida — como saber se está certo ou não? A imponderabilidade existe nos dois casos! —, os sábios foram obrigados a cumprir a parte desfavorável do acordo, trocando de lugar com o mendigo, que agora virara milionário.

No dia seguinte, podia-se ver o ex-proleta, agora rico e sábio, almoçando nos melhores restaurantes, fazendo compras e entoando provérbios. Na porta, os três mendigos olhavam o atual sábio com profunda tristeza (a lembrança da riqueza ainda latejava em suas memórias), porque aqueles, diferentemente deste, já tinham conhecido o sabor da fartura que, agora, se lhes tornara inexoravelmente inacessível (8).

MORAL: Se não sabe a resposta a uma questão, cale a boca!

SUBMORAL: De sábio e rico todo mendigo tem um tico.

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Notas:

(1) Sei que é difícil imaginar um mendigo no centro de São Paulo mas, vá lá, façamos uma forcinha!

(2) Método moderno de se especializar numa mesma atividade enquanto diz exercer duas diferentes.

(3) Um mendigo, que mal dorme, é capaz de sonhar?

(4) Não sei o que três sábios chineses ricos estariam fazendo em Sampa...mas isso é uma fábula afinal, não é? Então, qual é o problema? Use a imaginação! Aceite.

(5) Historicamente, todo chinês é ridicularizado quando tenta falar português, passando por Cebolinha. Até que ponto tem fundamento(eles não têm alguns dos nossos fonemas mesmo)? A partir de quando vira perseguição de brasileiro, coisa de piada? Não sei. Isto é uma fábula.

(6) Nas culturas orientais, idade e sabedoria se confundem, são conceitos próximos, cujos limites se entrelaçam. Isso é sério.

(7) Para um mendigo, que obviamente não teve educação, até que a resposta foi muito bem formulada.

(8) Uau! Que língua a nossa!



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