Besteirol



Antes do sucesso arrebatador e da morte, grande parte da crítica destruía o trabalho autêntico e despretensioso dos Mamonas Assassinas, cujo objetivo principal em sua vida e sua arte era ser feliz. Mais que um compromisso com o público, um compromisso com as próprias consciências dos integrantes, que popularizaram o gênero do “besteirol”. Um ano depois do trágico acidente aéreo que matou os Mamonas no auge do sucesso, crianças e adultos do Brasil inteiro ainda entoam suas melodias simples, recheadas de humor e trocadilhos: “Mina, seus cabelo é da hora! Seu corpo é um violão! Meu docinho de coco tá me deixando louco...”. Um exemplo de teimosia e persistência que minou a resistência da crítica, que, relutante, abriu uma exceção para o grupo.

Enquanto isso, corria por fora um arquiteto debochado com pinta de galã de novela mexicana, com nome artístico Falcão. Apostando no brega e no cinismo autocrítico, o cearense escrachado — que talvez tenha sido o precursor da nova geração de compositores e intérpretes cuja proposta é ridicularizar todo tipo de situação, relacionamento ou conceito estabelecido pela sociedade — levou muito mais adultos que crianças ao seu show. E a crítica mais uma vez fez ressalvas quanto ao bom gosto do trabalho do galalau barbado.

Quem teria criado esse gênero musical? O Genival Lacerda da Severina Xique-Xique ou alguém que nem chegou a se tornar conhecido do grande público?

No vácuo da perda dos rapazes da Brasília amarela e seguindo o exemplo dos conterrâneos Falcão e Genival, Tiririca surgiu com a não menos risível Florentina. Florentina estava para o Tiririca como a Severina Xique-Xique estava para o Genival Lacerda. Só que em vez de uma enorme e morfética barriga, Tiririca apresentava um boné colorido na cabeça e um bigode ralo sobre uma boca com mais gengiva que dentes. Dançando com muita peculiaridade, o horripilante cantor-compositor ganhou espaço entre as crianças — mas não só crianças — e vendeu tantos CD’s, que acabou pisando no calo de muita gente invejosa.

Na faixa Essa nega fede, Tiririca criticava o odor de uma mulher que tanto poderia ser sua mãe, sua irmã ou sua esposa, como uma mulher fictícia, sem identidade ou representatividade social, cujo bodum hipotético lhe serviu de inspiração para compor uma música boba, ingênua, pretensiosamente engraçada. Então, algumas ONGs brasileiras advindas do odioso modismo norte-americano do “politicamente correto”, viram na música infeliz um atentado conscientemente preconceituoso. Alegavam que a intenção era associar o odor desagradável à raça negra e aos pobres. Esqueceram, no entanto, que o próprio intérprete era negro, feio e pobre, embora sua música estivesse mudando esta última condição. Foi um caso claro de preconceito às avessas, um excesso de prevenção por parte de um grupo discriminado que já sofreu muito na pele, por causa dela.

Ninguém nega a existência do preconceito, tampouco a necessidade de se eliminá-lo. O que não se pode fazer é atribuir a qualquer menção racial o peso da discriminação. No entanto, o fato é que por alguns meses, Tiririca teve seu disco censurado e foi massacrado pela maior parte da opinião pública, além de chamado a depor no tribunal de justiça mais próximo. Muitos aproveitavam o incidente como pretexto para eliminar do mercado um tipo de música que não lhes agradava, mesmo não acreditando na tese de preconceito por parte do autor.

Desta vez, a mesma crítica que não perdoava o “besteirol”, e continua não perdoando (e com razão), saiu em defesa do direito do Tiririca dar a cara para bater e fazer sua música medíocre.

Apesar dos exageros freqüentes que a crítica comete em seu ofício, ninguém do meio jornalístico suporta ouvir falar em censura e vira bicho quando isso acontece. Reação natural de uma classe que tem um sem-número de experiências desagradáveis decorrentes do excesso de poder da ditadura militar. E censura, venha de onde vier, nunca é bem vinda. Melhor conviver com os Tiririca da vida. Muito melhor.

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