Autocrítica



Dia desses relia um livro do Ignácio de Loyola Brandão, A rua de nomes no ar, excelente compilação de crônicas do autor. Num dos textos, de caráter autobiográfico, o autor descrevia uma tarde de um dia útil em que ele, livre de imposições de horário ou patrões, voltava a pé para casa, quando começou a chover. Inicialmente, conta o autor, pensou em correr. Depois, diante da inexistência de compromisso iminente, resolveu andar e aproveitar a chuva. Uma daquelas emoções que só as crianças podem sentir (os adultos têm responsabilidades e não têm tempo para viver presentes meteorológicos). Contava então a boa sensação que teve mergulhando os pés na enxurrada formada na sarjeta da Haddock Lobo, em plena tarde de um dia de trabalho, e a felicidade de ser reconhecido (até na chuva) por um motorista que lhe ofereceu carona, mas recusou-se a juntar-se a ele por ter compromissos para os quais deveria estar seco. Ainda mais prazerosa a sensação por ser aquele um luxo exclusivo das pessoas que tiveram a coragem de um dia dizer não a tudo aquilo que é estabelecido.

Essa expressão ("tudo aquilo que é estabelecido") ficou martelando na minha cabeça. Já repararam como nós somos condicionados? Como temos dentro de nós incutidas as regras do jogo, as normas de conduta, de comportamento, o que e como fazer, o proibido, o permitido, o certo e o errado...

É como se fossemos robôs programados para executar as tarefas do cotidiano seguindo rotinas pré-concebidas à luz de um código ético e moral extremamente rigoroso. Aceitável, até certo ponto, se considerarmos que a convivência em sociedade requer o estabelecimento (e o cumprimento) de um padrão de comportamento básico. Condenável, muitas vezes, sempre que esse rigor é exagerado. Para não dizer estúpido.

Refiro-me a situações ridículas e desnecessárias às quais nós mesmos nos submetemos. Já fizeram entrevista para emprego ou estágio? Então sabem exatamente do que estou falando.

O candidato a um determinado cargo não deve ter vícios, de qualquer espécie, a menos que isso favoreça seu desempenho ou seja também um vício do patrão. Deve ter boa aparência (???). Isto significa não fugir em nada aos padrões característicos de sua futura profissão.

O executivo precisa de óculos, gel sobre o cabelo necessariamente curto, vestuário conservador. Nada de jeans ou camisetas. Nada que permita o movimento respiratório normal. Mesmo que não lide diretamente com o público, ficando sempre na frente do micro, atrás de uma mesa, deve permanecer em seus trajes sociais, incomodado ou não. Afinal, conforto não aumenta a produtividade. Ou aumenta?

Talvez o método seja correto. Talvez a permissividade acabe gerando excesso de liberdade, o que afrouxaria o ritmo de trabalho. Pode ser que quando o ambiente de trabalho comece a lembrar nossa própria casa a concentração evapore. Ou se a camiseta da nossa colega nos permita ver seus seios entumecidos, nada mais funcione além dos hormônios (isso parece ser verdade!).

No entanto, essa dispersão ocorreria exatamente por estarmos acostumados a não ver os seios de nossas colegas durante o período de trabalho. Seios e coxas fazem parte da vida social, e não da profissional, simplesmente porque sempre foi assim. A camiseta e o jeans são imediatamente associados ao lazer porque nunca fizeram parte do escritório, nunca entraram na empresa. Já tiveram que levar algum tipo de trabalho para fazer em casa? Precisaram vestir terno para fazê-lo? E não ficou pronto ali mesmo entre as revistas e os jornais da sala, com a TV ligada para dar sensação de ganho de tempo, com a família passando por você, trocando comentários, comendo porcarias e bebendo refrigerante? A bermuda não atrapalhou em nada. Nem atrapalharia se o seu cabelo estivesse pelo meio das costas (só atrapalharia se estivesse solto, cobrindo-lhe o rosto). É bem verdade que a sua colega gostosa não estava lá de camiseta, mas...

Outras profissões são mais permissivas. Parece haver maior flexibilidade, maior aceitação das peculiaridades dos indivíduos. Mas certamente, em algum ponto, apresentam desvantagens, idiotices impostas pelo costume e mantidas até o basta reacionário derrubar a tradição. Até lá, temos de nos submeter ao que é estabelecido se quisermos tomar parte no jogo.

Enquanto sonhar ainda é permitido até às pessoas sérias, imagino como seria bom poder fazer como diz aquele comercial de cigarro: levantar de manhã e deitar à noite, tendo feito, entre um e outro, apenas o que dê prazer.

Enfim, não há nada melhor que não ter que fazer nada. Ou pelo menos, não ser obrigado a fazer nada. Poder sair para andar e, se quiser, entregar-se sem pressa aos apelos meteorológicos.

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