Vocativos
Samuel saiu de casa e voltaria tarde. Não sabia a hora, mas seria tarde. Mas era a pedido da própria mulher que não agüentava mais o marido pegando no pé dela por causa do seu modo de falar. Samuel reclamava que ela não dava atenção às coisas que ele dizia e que ela usava errado os vocativos. Foi se encontrar com Régis, um velho amigo.
— Ela não dá a mínima pro que eu digo, Rejão. Entra por um ouvido e sai pelo outro direto, sem escalas.
— Tô ligado, Samuca.
— Não é que eu não goste da minha mulher, tá entendendo. O problema é a desatenção. A gente nota pelos vocativos. Às vezes eu acho que eu tô falando sozinho, pras paredes. Se eu disser que estou exausto, com fome ou com sono é a mesma coisa porque ela não escuta e diz ‘tá bem, meu bem’. Você entende, Rejão?
— Tô ligado, Samuca.
— Ela não diz ‘oh, meu amor, tudo bem!’. Diz ‘tá bem’ pra encurtar o ‘tudo bem’ e ‘meu bem’ de preguiça de pensar em outra expressão pra me chamar. Aproveita o ‘bem’ do ‘tá bem’ e vai no embalo.
— Tô ligado, Samuca.
— Ontem, por exemplo. Eu cheguei cansado e ela me perguntou por quê eu estava estranho. Eu estava cansado, não estava estranho. Mas pra mulher quando o homem não está como ela espera que esteja, ele está estranho. Então eu não posso estar cansado sem ser tomado indevidamente como estranho? Aí eu disse ‘estou cansado’ e ela respondeu ‘tá bem, meu bem’. De novo!
— Tô ligado, Samuca.
— Se em vez de eu dizer ‘estou cansado’ tivesse dito ‘pudim com ferrugem’ ela responderia ‘tá bem, meu bem’ da mesma forma.
— Tô ligado, Samuca.
— E você? Você não sabe falar outra coisa?
— Tô ligado, Samuca. Quer dizer, o que você quer que eu diga?
— Não sei. Qualquer coisa além de ‘tô ligado, Samuca’.
— ‘Pode crer’ é melhor?
— O problema não é a frase mas a entonação. Se você dissesse: ‘pô, Samuca, só tô ligado!’ era uma coisa. Agora, ‘tô ligado, Samuca’ dito assim, displicentemente, não tem valor sentimental nenhum. O ‘Samuca’ vem por último, isolado no final da frase, meio que por obrigação. É quase uma interjeição. Melhor dizer ‘hum-hum’ que nem precisa abrir a boca, então.
— Só estava te apoiando.
— Apoio de má vontade além de não ajudar, irrita.
— Pô, Samuca, só tô ligado!!!
— Tudo bem, Rejão. Tira o sarro mesmo...
— Que foi, agora? Não falei como você queria? Eu disse ‘pô, Samuca, só tô ligado!!!’, com exclamações no final, o ‘Samuca’ logo depois do ‘pô’ pra valorizar você e tudo. Você mesmo pediu!
— Esse é o problema. Você falou porque eu cobrei, senão continuaria no ‘tô ligado...’
— ‘...Samuca’. Faltou o ‘Samuca’.
— Eu sei. Dá na mesma.
— Não dá na mesma! ‘Tô ligado’ pode ser ‘tô ligado, fulano’ ou ‘tô ligado, qualquer um’. Mas eu deixei claro que era ‘tô ligado, Samuca’!
— Só que era tão impessoal quanto um ‘tô ligado’ simples, sem vocativo.
— Você e o vocativo! Como é que eu falo então, Samuca? Ou melhor: Samuca, querido, como é que eu falo então?
— Não me pergunte, improvise! Ou você quer cair de novo em outro ‘pô, Samuca, só tô ligado!’ falso e superficial.
— Tá bem, tá bem...
— Se completar com ‘meu bem’, apanha.
— Só disse ‘tá bem’, simples, sem vocativo.
— Impessoal, falso e superficial. E então?
— Calma! Estou esperando você dizer alguma coisa.
— O que eu queria dizer eu já disse. Que minha mulher não me dá atenç...
— Nossa!! Samuca, meu amigo, o quê que você está me dizendo, Minha Nossa Senhora, Mãe de Deus!! Saiba que estou embasbacado por saber que sua mulher está cansada da sua mania de implicar com o que ela fala e com os vocativos, Santa Maria!! Samuel, meu irmão, ouça o que eu digo: eu estou ligadíssimo!! Nossa, Samuca! Samuca, Nossa! Uau! Mas qual! Alvíssaras!...
— Rejão...
— Péra, que eu tô tentando improvisar...
— Rejão, você tem razão. É melhor eu não implicar tanto com a minha mulher. Nem com os vocativos. Aliás, eu já tô indo. Valeu pela força.
— Quê que é isso, Samuca. Digo: Samuca, quê que é isso.
— É melhor eu ir. Obrigado pela companhia e pela improvisação. Eu acho que eu tô pegando demais mesmo no pé das pessoas. Você me ajudou um bocado, Rejão. Ajudou mesmo.
— Tô, ligado, Samuca. Só tô ligado.
Samuel voltou para casa e para a mulher, mas nunca mais pegou no pé dela por causa dos vocativos. Benditos vocativos.
Posted by
giacca, synbad, tchuca...
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Parabens! Bela Obra!
ReplyDeleteEstava a pesquisar sobre vocativos e topei com uma bela crônica!!
Higor Cunha