Consultório
— Sr. Carlos, tenha a bondade...— chama a secretária.
Eu seria o próximo.
Estava sentado num daqueles sofazinhos de consultório. Daqueles que por incrível que pareça já fizeram parte da sala de alguém. Depois, quando o proprietário percebeu que o sofá não era apenas desconfortável mas também assustava as visitas, foi passado para a frente. Nada melhor que mandá-lo para um consultório, considerando que seus freqüentadores não são visitantes, mas clientes inabaláveis (se o barulho que vem de dentro da sala do dentista não assusta a clientela, não será um sofazinho amarelo que causará esse efeito!). Aliás, esse deve ser o maior dilema do profissional liberal que abre um consultório e não tem dinheiro para mobiliá-lo decentemente. Sim, porque não se pode ter controle sobre o mal gosto dos outros, que dirá sobre o refugo alheio.
Apesar de estar sentado na prova irrefutável da existência de adep¬tos da deplorável moda dos anos 70 (feche este livro se você não lamenta a moda desse episódio caótico e conturbado da nossa história recente), estava muito feliz relendo uma Manchete de 86, sabendo que o Sarney presidente era coisa do passado. Eu nem sabia que aquela revista existia a tantos anos.
Tenho a impressão de que as revistas de consultório são fabricadas especialmente para provocar a resignação do cliente diante da inexorabilidade do tempo, que corrói o vigor, amolece a pele e intensifica o efeito gravitacional sobre as pessoas (envelhecendo as revistas também). O cirurgião plástico pode aproveitar o impacto causado por elas em seu favor e vender uma recauchutagem nos seios, um nariz novo e menor, uma sucção de lipídeos ou uma remoção de pelancas no pescoço. O oftalmologista pode reforçar sua tese sobre a necessidade de óculos novos, e talvez uma cirurgia de catarata, alegando que aquelas revistas são recém chegadas. Até o dentista pode argu¬mentar que a gengivite ou a inflamação da raiz do segundo molar podem trazer delírios visuais como sintoma (e aproveita para recomendar um oftalmologista, amigo dele). Do geriatra nem se fala... Já o clínico geral faz uma vistoria completa no paciente e profetiza:
— Pode ser uma virose.
Não sei exatamente a definição médica para virose, mas conheço uma empírica: virose é o agente causador de um mal estar temporário (febre, cefaléia, fraqueza) e sem maiores conseqüências, que aparece sem¬pre que o médico não sabe o que o paciente tem.
— Doutor, tenho febre, dores de cabeça e cansaço. Às vezes vem, às vezes vai.
E o médico, seguro:
— Pode ser uma virose.
Mas por mais que nós, leigos, fiquemos insatisfeitos pela imprecisão do diagnóstico, devemos dar o braço a torcer e reconhecer que normalmente eles têm razão. É apenas uma virose. Seja lá o que isso signifique.
Enquanto espero minha vez de ser atendido, penso nas coisas que podem ter levado aquelas pessoas até lá.
A moça do nariz vermelho e lenço na mão traz uma ex¬pressão de sofrimento que transborda um simples quadro de corrimento e tosse. Deve ter inflamação. Ou talvez apenas uma virose bem forte.
O pé quebrado do menino certamente não é virose. Nem o olhar enternecedor do homem sobre a cabeça imberbe da esposa. O mal que acomete a pobre mulher é infinitas vezes mais mordaz do que a virose e requer tratamento quimioterápico. O casal se olha, sorriem, abraçam-se. A cena culmina num torpor consciente e conformado, trazendo à minha memória o saguão de um pronto socorro.
* * *
Entro no saguão do PS com meu irmão. Estávamos lá por minha causa: cefaléia e febre intermitentes, havia quatro dias. O feriado prolongado me levou direto ao PS e não ao consultório, como de costume. Logo na entrada, um aviso: "Retire uma senha e aguarde sua chamada pelo monitor". Era comigo. Peguei uma senha. Por sorte, apenas um número acima do mar¬cado no monitor. Breve, chamaram meu número e solicitei ao atendente uma consulta a um clínico geral. Se tivesse dito os sintomas, acredito que o próprio atendente me alertaria:
— Pode ser uma virose.
Novo aguarde: espero agora a chamada do médico, ou da médica. Enquanto isso, não posso deixar de reparar nas pes¬soas que compartilham da mesma paciência que eu naquele recinto.
Um senhor de aparentes 60 anos lê, pacientemente, uma pequena revista. Parece ter ascendência nórdica ou ariana, e muito provavelmente judaica. De tempos em tempos, fecha a revista, levanta-se, vai até a porta, observa o movimento dos carros. Depois, retorna ao mesmo lugar, abre a revista no ponto em que parou e retoma a leitura fleumática.
Ao seu lado um casal jovem se diverte com um bebê. O rapaz as¬sopra as pequenas bochechas, roubando risos soltos do menino, provocados por aquele barulho. A mãe avaliza o carinho com seu olhar de mãe.
— Acompanhante de senhor Paulo Vasquez... — inquire a en¬fer¬meira, fazendo levantar-se uma senhora baixinha, idosa, porém sadia. — Acompanhante de...
— Aqui! Estou indo. — responde a disposta velhinha.
Noutro canto do salão, vê-se o desespero mal controlado de uma mulher contorcendo-se de dor. O semblante confirma a intensidade. Não há nada que ela, ou qualquer pessoa, possa fazer, a não ser esperar.
Os acompanhantes fingem tranqüilidade diante do fato de seus parentes já terem sido atendidos.
O judeu se levanta para outra esticada de pernas.
— Uma maca, pelo amor de Deus, que a pessoa não pode se movimentar! — suplica afoitamente a voz que invade o PS num repente. A superficialidade do meu mal estar me dá franca vontade de ir embora, mas fico.
Uma maca com um senhor ligado ao soro atravessa a tristeza disfarçada das pessoas do saguão. A seguir, uma cadeira de rodas traz uma senhora irritada, depois de ser atendida. Dirige-se ao atendente:
— Você pode conseguir o telefone do Doutor Van Der Lei — não era esse o nome, mas era nitidamente alemão. O judeu se le¬vanta e, ordenado pela mesma mulher, vai providenciar o carro para irem embora.
— Infelizmente eu não posso conseguir esse telefone porque esse médico não é deste hospital — responde, meio sem jeito, o atendente.
— Quer dizer que se eu passar mal à noite eu não terei como ligar pra ele!? — irrita-se injustamente com o funcionário.
— É que nós só temos os telefones dos médicos deste hospital! — de¬fende-se.
— Eu sei! Mas ele é o meu médico há anos! — argumenta inconsistentemente, já aos berros.
— Mas eu não tenho como saber o telefone dele. Eu teria que ligar para o hospital onde ele trabalha para ver se eles me fornecem o número.
— E você não pode fazer isso!? — exige, como se fosse uma obri¬gação recusada.
Para se livrar do aborrecimento, o jovem procura obter a informação, fugindo completamente ao seu serviço. Finalmente, após vários telefonemas, obtém o número e tranqüiliza a senhora.
O judeu retorna e a leva para o carro. Nessa hora, a secretária da dentista chama um nome, não o meu, levando minha mente de volta ao consultório.
* * *
— Sr. Jorge, a doutora vai atendê-lo agora.
Eu seria o próximo.
A primeira imagem que me vem após meu retorno mental ao consultório é a da mulher na minha frente, que entrara enquanto eu estava dis¬perso. Atônita, procura desesperadamente alguma coisa dentro de sua bolsa. Não encontra. Vira a bolsa sobre o sofá (aquele mesmo, o amarelo dos anos 70), expondo-se aos demais clientes. Afinal, a bolsa de uma mulher pode revelar informações que anos de divã não conseguiriam obter.
Havia batons, lápis e uma completa linha de produtos de maquilagem. Um absorvente. Sem uso, é claro. Papéis dobra¬dos. Camisinhas. Uma agenda com páginas dobradas e, pelo volume, repleta de recortes de revistas colados estrategicamente. Analgésicos (para combater uma eventual virose) e vi¬taminas. Clipes, uma tesoura, anéis, mais papéis dobrados, elásticos de cabelo e grampos. Canetas, cartões e uma carteira de documentos. Lembrava, no que diz respeito à desorgani¬zação e não aos itens, minhas gavetas da mesa do quarto. Só que eu não uso absorventes.
Levantou a cabeça quando se deu conta da ausência do objeto procurado:
— Mas eu tenho certeza que pus na bolsa. — desconsolada. —Tenho certeza, meu Deus!
Olha para mim e, percebendo que nada podia ser feito para alterar o fato de que sua certeza era equivocada, abaixa a cabeça, colocando seus pertences de volta na bolsa como quem limpa uma ferida.
Levanta-se e sai, desconcertada. Provavelmente, sem aquilo que ela procurava não poderia consultar-se. Vai abrindo a porta e, antes de sair, dá uma última olhada para mim. Eu?? O que eu po¬deria fazer? Nada. Era apenas um olhar choroso pedindo por consolo, compaixão.
Ficamos apenas eu e um senhor que desde sua chagada lutava con¬tra o sono. Pendia a cabeça, cochilava e, quando acor¬dava, esboçava uma expressão de naturalidade, como se Orfeu não lhe chamasse. Pelo menos estava tranqüilo. A proximidade de sua consulta não lhe sobressaltava, o que também era um bom sinal.
O ir dos anos (e das pessoas queridas) desenvolve uma estra¬nha cumplicidade entre os desconhecidos nos con¬sultórios, hospitais e cemitérios. Todos sabemos o que nos espera. É apenas uma questão de tempo.
— Sr. Paulo, é a sua vez.
Eu seria o próximo. Talvez.
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giacca, synbad, tchuca...
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