Posfácio



No início era apenas um desejo de realizar um feito nobre, até então visto como um sonho, e retomar um hábito da adolescência, agora sob a óptica profissional. Era também a oportunidade de ingressar no rol numeroso e respeitado dos escritores, mesmo sem ter a certeza do reconhecimento e da aprovação dos futuros leitores. Era entrar sem ser convidado num mundo desconhecido, estranho, sem referências no tocante à receptividade de críticos, escritores e demais leitores, consumidores finais habitantes desse novo mundo. No fundo, era principalmente o modo mais rápido e acessível de escapar da rotina, fingindo não saber que se o ingresso nesse novo ambiente fosse bem sucedido, a conseqüência direta seria a aquisição de uma nova rotina e a indireta, o risco desta ser ainda mais penosa do que a primeira.

Os primeiros textos surgiram espontâneos, fluíram rapidamente da cabeça à tela do micro sem que os dedos e o senso crítico oferecessem resistência. Como se já estivessem aguardando há muito tempo pela licença do autor para ganhar vida. Depois, traziam claramente a idéia de um parto, menos pela falta de assunto que pela insegurança de publicar o primeiro livro.

Quando vem a idéia de mostrar aos outros aquilo que passa por nossa mente doentia, dificilmente acompanha a sensatez de imaginar as dificuldades decorrentes dessa intenção. Você se dirige ao computador (versão moderna do bloco de papel branco e lápis ou máquina de escrever), entra num editor de textos e começa a digitar aquilo que lhe parece ser o início de uma obra imutável. Imaginoso, você se vê nos programas de TV sendo entrevistado por seus ídolos, apreciado pela crítica e pelo público, aclamado como a grande revelação do ano, da década, do mundo contemporâneo...

As fantasias não param e lá está você, em sonho, frente a frente com um de seus cronistas preferidos (um dos responsáveis pelo seu amor pela leitura e pela literatura, alguém que indireta e inconscientemente lhe conduziu à tela do monitor), sustentando um diálogo improvável e ridículo, mas profundamente envaidecedor. Ele, o seu ídolo, diz: "Você faz idéia do porquê de ser tão melhor e mais criativo do que eu?". E você, que será um gênio ainda mais admirado por sua modéstia, responde: "O que é isso? Imagina...". E como todos — escritores, críticos e público — insistem na mesma tese, você, que não é teimoso, aceita: "Obrigado. Fico muito honrado com o elogio".

Volta a escrever, depois de um tempo descansa. Nenhum escritor é de ferro. Quando volta, lá vem a imaginação rondar sua primeira criação, guindando-o ao mundo paralelo em que você tem absoluto controle das impressões e opiniões de todos, sobretudo daqueles cuja palavra é de fundamental importância para sua vida. Você se concentra, discorre alguns parágrafos. As páginas se reproduzem (às vezes rápidas e indolores, às vezes custosas), você toma gosto pelo ofício, a naturalidade do trabalho traz cada vez mais prazer. Recheando a lida, as fantasias. O romancista que sempre lhe causou admiração comenta, no delírio: "Você trabalha bem com o humor — a gente se esborracha de rir! — mas também apresenta teses interessantes, reflexivas, densamente cheias de idéias inovadoras, jamais pensadas...". Ser modesto tudo bem. Mas simplório, não! Você é bom no que faz, rapaz! Todos pensam assim! E se bobear você mesmo toma o sonho por realidade...

Mas a própria natureza do trabalho de quem escreve acaba trazendo seu traseiro de volta à cadeira, aquela mesma na frente do micro. Um livro não se faz de uma crônica boa, engraçada quando necessário, séria na hora certa. Nem se faz de textos amontoados, jogados a esmo. É preciso ter consciência de que o livro representa sua personalidade, seus conceitos estão impregnados nele, ele é você para o leitor. O indivíduo lê um pouco, olha sua foto na orelha do livro, começa a formular uma opinião. Na segunda leitura, outra olhada para a foto, retoques no seu conceito. Do mesmo modo que você fazia quando lia: "Veríssimo, não é? A cara é simpática. De onde ele tira essas idéias? Cada uma... Excelente!". Lá está, o autor ganha um arquivo de impressões na sua memória emotiva e tudo que ele vier a escrever vai sendo acrescentado, positivamente ou não, nesse arquivo literário-sentimental. Ao longo dos anos, acumulam-se diversos arquivos: tem Loyola, Rubem, Sabino, Diaféria, Millor, Walcyr, Bandeira, Drummond... Tem poetas, romancistas, contistas, cronistas, tantos istas quantos existam... Tem estrangeiros e clássicos...

Definitivamente, escrever não pode ser feito com irresponsabilidade, com a displicência daqueles que respondem, por obrigação, a um cartão de Natal: "— Felicidade, Paz e Harmonia. Os mais sinceros augúrios... — pronto, escrevi!". Não. Quem publica um livro dá a cara, fica nu perante seu público, expõe-se por escolha, não por indução, submetendo-se ao crivo impiedoso do leitor. Ou você conquista, paulatinamente, ou se exclui. Seu arquivo pode até ser apagado: pra quê desperdiçar memória com bobagens?

Agora que a idéia do livro não se resume apenas a uma aventura desvairada e já se faz consciente o risco do ridículo (ou, pior que a depreciação, o desprezo), você tem pela frente uma tarefa prazerosa e gratificadora, embora árdua e imprevisível. "Quanto tempo levará para compor um conjunto satisfatório de textos? Será satisfatório para os outros também? Conseguirei terminar?". Não adianta ter insegurança ou medo por antecipação: melhor aguardar a seqüência natural dos acontecimentos, deixar "o barco correr ao sabor das ondas" e aproveitar a sensação de controle da situação que a incerteza do futuro traz. E continuar escrevendo...

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